A polida gaiola da gentileza.
A polida gaiola da gentileza.
Existem segredos que apenas o tempo nos revela.
Eu trabalho há trinta anos como atendente em uma loja. Os dias passam lentamente e sempre entra algum velho conhecido que trás uma boa história, às vezes um bom conto, peripécias em geral.
Ao longo desses anos atendo a uma mulher que é minha cliente fiel. Ela é casada, assim como eu sou. Desde sempre ela entra na loja, me dá um curto oi, compra algo e segue seu caminho. Por vezes sozinha, outras vezes acompanhada de seu marido. Sempre reservada e sem nunca se estender em nenhum assunto. Não me lembro qual foi o primeiro dia em que ela se tornou minha cliente. Sem exageros, tenho a impressão que ela veio com o mobiliário.
Com o passar dos anos, conheci seu bebê. E quando esse cresceu, veio uma outra filha. A família dela aumentava, bem como a minha aumentou ao longo desse tempo. Sabia da vida dela apenas isso.
Quarenta anos. Não era nem uma amizade. Nem um coleguismo, como os que arranjamos em nossos trabalhos. Apenas curtos cumprimentos, apresentação de um novo membro da família, uma ou outra novidade superficial e um breve tchau.
Mas o tempo trouxe a ela a doença da memória. E essa doença é cruel. Ela faz com que a pessoa esqueça do que viveu. Mais do que isso, ela quebra a barreira que separa as ideias que apenas foram pensadas das ideias que foram ditas. E quem adoece assim revela sem querer seus segredos, suas fantasias, como se fosse algo que sempre falou, não algo que apenas pensou.
E, em uma tarde, ela entrou na loja com seu marido, como de costume. Mas dessa vez ela fez algo que nunca havia feito. Com uma inocência de criança, falou alto como se fosse algo que sempre fizesse ao entrar na loja:
-Vou ver o homem bonito de olhos azuis...
Fiquei envergonhado.
O marido dela explicou a situação. Disse que era uma atitude recorrente. Em vários locais, ela fazia algum comentário inesperado, às vezes elogios, muitas, realmente muitas ofensas gratuitas a “desconhecidos” conhecidos. Ela não guardava mais aqueles pensamentos que em sua juventude não se transformam em palavras. Pensamentos presos em grades douradas, em ouro das boas maneiras. Reforçadas são as jaulas da delicada gentileza.
E após eles irem embora, trinta anos de convívio foram preenchidos com algo novo. Quantas e quantas vezes ela pensava que iria encontrar o tal “homem bonito”. Modéstia à parte, eu. Quando ela começou a pensar isso? ela pensava todas as vezes? Quantas outras pessoas que vem aqui também trazem dentro da alma pensamentos semelhantes, bons ou maus?
Quantos de meus dias poderiam ter sido animados se, ao invés de pensar, ela falasse, sem segundas intenções, apenas reconhecendo uma beleza que alguns percebem e nada dizem. Sem dúvida eu ficaria envergonhado, sem jeito, mas em quantos dias desses anos essa frase me teria restaurado a alegria?
E seu marido? Descobre pensamentos antes ocultos, pensamentos que ocorrem de forma natural a qualquer um de nós, mas como é dela marido, machucam como um murro no estômago. Tanto que ele me disse:
-Disso ela lembra!
Me consola os segredos daqueles que não gostam de minha pessoa. A polida gaiola da gentileza.