Miniconto #4: Vento Sudoeste

Abro a porta, tiro os sapatos. À revelia de todo o silêncio do apartamento, um casal se ofende no segundo andar puxando a descarga. Minha cozinha é um mausoléu de ladrilhos brancos. E eu olho pra tudo perplexo e sem vida. Quero descansar. Na porta da geladeira dorme um resto de Cabernet Blanc da semana passada. A rolha sai fácil. Eu encho um copo de requeijão e vou pra sala com a garrafa na mão.

A sala tem mais vida, graças a esta avenca de parede e uma jibóia que já esconde meus livros entre suas folhas verde-musgo. Já não escuto a baixaria dos vizinhos. Posso refletir com mais clareza minhas pusilanimidades. Essa pasta marrom, por exemplo, cheia de papéis inúteis. É um convite ao escritório. O Alcides quase não pisa mais lá. Ficou tudo nas minhas costas. Só vive em São Paulo, com a nova secretária trazida às pressas de Magé.

E eu, sem secretária de Magé nem de lugar nenhum, seguro firme meu copo frio, com o cabernet verde já abraçando meu cansaço. Em cada gole uma inspiração fresca. Uma dúvida, Um lampejo! O Alcides some da mente e dá lugar a uma frase melódica de Wes Montgomery. Que delícia ouvir esta harmonia flutuando nas ondas da memória.., vou ligar a vitrola! Quero quebrar o silêncio com meu jazz hoje.

A banda toca pra mim.

Sinto uma necessidade de sair. De perambular. De andar pelas ruas. Sem coragem, ao menos abro a janela e sou surpreendido com o sopro fresco do vento sudoeste anunciando chuva. As plantas balançam e se batem na parede. Na prateleira, tombam as comédias de Molière, abertas na página 36 de seu "Burguês Fidalgo".

Eu tombo também. No sofá. E desfruto minha embriaguez sozinho. Sem sono, com a camisa aberta e ouvindo o frenesi da musicalidade de Montgomery. Imerso como um cego na penumbra do meu caos particular.

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@edu.cassilhas