Os anos dourados se foram
Era quase meia noite. Ele entrou pela porta do apartamento, ligou a luz e se jogou sobre o sofá.
A baixa iluminação refletia sua alma. Nas paredes, haviam fotografias de seus anos dourados, quando fazia parte de uma famosa companhia de dança. E como eram dourados aqueles anos. Ganhara muito dinheiro. Tinha beleza, fama e os homens que desejava aos seus pés.
Namorara muito, até encontrar seu grande amor. Àquela altura, já havia partilhado com a família sua sexualidade. Passada toda a tensão inicial com direito a espetáculo de sua mãe, dizendo que jamais o aceitaria, e o rompimento com a única irmã, tudo se estabilizou. Todas as coisas apaziguaram quando ele começou a fazer viagens internacionais, nessa época seu telefone não parava de tocar, as duas queriam todos os presentes que ele pudesse levar na mala. Ele riu ao lembrar-se daquelas duas. Ganhando muito dinheiro pouco as importava se namorava homens ou mulheres. “Ah, nada mais lindo que o amor fraterno”, pensou.
Aquela foi uma época brilhante. Bons anos! Os olhos dele percorreram cada foto com carinho, relembrando os rostos sorridentes, os momentos de palco, os aplausos calorosos da plateia.
A dança sempre foi sua paixão e, naquela famosa companhia, ele viveu momentos de realização artística e pessoal. Conhecera tantos lugares, tanta gente linda e influente, atores famosos. Alguns desses não resistiram aos seus encantos. Mas nenhum deles superou seu grande amor.
A saudade era inevitável. Seu companheiro, um homem gentil, carinhoso e talentoso, compartilhou com ele os melhores anos de sua vida. Juntos, enfrentaram preconceitos, conquistaram espaços e viveram uma história de amor que poucos poderiam compreender em sua profundidade. Mas agora tudo era saudade. Ele estava só.
Lembrou que por algum tempo planejaram adotar uma criança, mas receberam tantas críticas de sua mãe e irmã, que deixaram-se influenciar e desistiram da ideia.
— Onde já se viu um casal de homens adotar uma criança — disse a irmã. Ela recusava-se a usar o termo gay, tamanho era seu preconceito. Sua mãe, de maneira mais gentil utilizava outros argumentos, que os dois viajavam muito em razão das apresentações e que por isso não seria adequado trazer uma criança para aquela loucura que era sua vida.
- Criança precisa de estabilidade – dizia, quando na verdade desejava dizer o mesmo que sua irmã.
Naquele momento arrependeu-se de ter cedido a pressão das duas. Afinal, elas não faziam parte de sua vida a anos, quando viram que suas intrigas não o separariam de seu grande amor, afastaram-se de uma vez por todas e não lhe fazia falta. Agora ele poderia ter um filho que o acolhesse e amasse como era, ou pelo menos, um elo permanente com o grande amor de sua vida.
Enquanto observava as fotografias, uma delas em especial chamou sua atenção. Era uma imagem dos dois dançando juntos em um espetáculo memorável. Naquele instante, as lembranças inundaram sua mente: os ensaios intermináveis, o nervosismo antes de cada apresentação, o orgulho nos olhos um do outro quando recebiam os aplausos efusivos do público. Um sorriso nostálgico se formou em seus lábios enquanto ele sussurrava o nome do seu amado, como se sua presença ainda estivesse ali, ao seu lado.
Todavia, completava um ano que seu companheiro havia partido. Uma doença implacável o levou embora, deixando um vazio em seu coração e uma tristeza que, mesmo com o tempo, não desaparecia completamente. As memórias eram doces, mas também dolorosas, e essa data especial, seu 55º aniversário, parecia pesar ainda mais em seu peito, pois significava celebrar um ano de sua vida sem a presença do seu amado.
Sentindo-se só e contemplativo, ele decidiu abrir uma garrafa de vinho que guardava para ocasiões especiais. Pensou que aquela data, apesar de melancólica, merecia um brinde em homenagem ao amor que compartilharam.
- Eu sei que você iria querer me ver bem. - Disse em voz alta.
Enquanto as lembranças dançavam em sua mente, ele continuou falando em voz alta, como se o amado estivesse presente:
- Você se lembra daquele dia em Paris, quando dançamos ao luar à beira do Sena? Era como se estivéssemos flutuando no ar, em perfeita sintonia. Ah, meu amor, como sinto falta desses momentos.
Lágrimas escorriam por seu rosto enquanto ele se permitia lembrar de cada detalhe daqueles momentos felizes. Era como se, ao revivê-los, pudesse sentir a presença do amado mais uma vez, mesmo que apenas em suas memórias.
Quando tomava a terceira taça de vinho, lembrou-se que a tarde havia comprado um cupcacke de chocolate com confetes coloridos que eram os preferidos do seu amado, correu até o carro para buscá-lo.
Pegou uma pequena vela que estava na gaveta e acendeu. Com um sorriso misturado às lágrimas, ele soprou a vela solitária e fez um pedido silencioso. Os anos dourados se foram, mas o amor, esse permanecia eterno.
Obs. Este conto faz parte da coletânea Além das estações da Cartola Editora.