UM CONTO DE NATAL
Eu o conheci. Morava no meu bairro. Tinha uns 10 anos. Magrelo, esperto, moreninho. Tinha olhos grandes e quando sorria, os dentes muito brancos chegavam a brilhar. Sua presença era marcante. O moleque deixava todo mundo fora de si, não porque era mal, mas porque tinha alguma coisa diferente, que ninguém explicava...
Em sua casa, não havia silêncio pra ninguém. Ou cantarolava canções de sucesso ou em "bocca chiuza" entoava as músicas que ouvia a mãe cantar, lembrando-se ela dos tempos de mocinha. Ele sabia todas, mas nessas músicas ele era mais doce, mais discreto, mais ameno...
Quando a mãe se cansava de ouví-lo, ele parava antes dela falar, e saía para fazer outra coisa. Parece que adivinhava...
Isso, quando não resolvia escutar os velhos discos na vitrola antiga da lojinha do alfaiate, cantando em alto e bom som. O alfaiate ficava rindo dele até que dizia - chega - e aí ele guardava os cebolões, agradecia e saía, não antes de acabar de varrer os retalhos espalhados no chão.
No bairro, era a alegria de todos. Parava em todas as lojas e oficinas, cumprimentava a todos com aquele sorriso maravilhoso de quem leva na alma toda a alegria do mundo!
Sempre queria saber das coisas de cada um, interessava-se pelos problemas como se, de alguma forma, pudesse resolvê-los. Geralmente puxava prosa justamente com quem precisava de um desabafo!
E os sérios senhores e senhoras dos pequenos negócios contavam com gosto. Provavelmente sentiam-se bem em desabafar com aquele garoto sempre atento, interessado, e que após ouvir as queixas, sempre tinha uma palavrinha de conforto ou estímulo para cada um. Coisa simples. Era às vezes um - deixa pra lá, não liga pra isso, não; ou - espera que ela volta, viu? - ficou caro o conserto? Você arranja o dinheiro, sim, pode esperar.
E por aí afora...
Quando dizia até logo, sempre ouvia: mas já vai? Fica mais um pouco...
Na realidade, não fazia nada de concreto por ninguém, a não ser dar aquele sorriso iluminado, escutar com paciência e fazer um breve comentário.
Todos diziam que ele tinha um coração de ouro, pois sempre ajudava a todos... Ninguém percebia, porém, que era somente isso, apenas aquele sobrenatural sorriso... Tinha tanta alegria de viver, era tão positivo e confiante que transmitia facilmente suas virtudes e, sem saberem, as pessoas iam mudando de atitude ao seu lado.
Nas lojas por onde passava, se via alguma criança, era certo que entrava. Ficava rondando, puxando conversa. Os pais olhavam e vendo que era ele, despreocupavam-se. Com as crianças menores, então, não havia ninguém mais paciente, engraçado e palhaço. Fazia os pequeninos rirem, distraía-os enquanto os pais estavam ocupados. Era uma babá temporária-relâmpago.
Se algum deles fazia birra ou teimosia, dava um jeito de distrair a criança, até que o motivo da alteração deixava de existir. Os papais e mamães agradeciam satisfeitos e lá se iam embora, puxando os filhos que ainda olhavam para traz, querendo ficar mais.
Estava sempre atravessando algum deficiente ou idoso pela avenida.
Ia também na loja de animais. Mexia com os filhotes de cachorro à venda, assobiava para os passarinhos, chegava a ajudar o veterinário em pequenos curativos, segurando os bichinhos para exame e vacinas. O doutor dos bichos até achava bom quando ele chegava.
Ele os acalmava, mimava-os, e como por encanto, eles ficavam quietos e mais tranqüilos.
Nunca um cachorro estranhou sua presença e rosnou para ele. O veterinário avisava: cuidado esse cachorrão além de grande é bravo! Ele respondia: ‘tá bom. Não demorava nada, lá estava o cachorrão grande e bravo lambendo sua mãozinha.
Apesar da inquietude, de não conseguir parar muito tempo no mesmo lugar, sua professora achava que ele era um “anjo”. Não se sabe bem por que, pois não era de ficar agradando só por agradar. Em sua eterna movimentação, observava tudo e todos e estava sempre por perto quando alguém precisava de ajuda para qualquer coisa.
Adivinhava até quando a professora tinha sede e perguntava com aquele rosto inocente: a senhora não está com sede? Eu estou, como adivinhou? Pronto, lá ia ele buscar água para a sede inventada e trazer para a professora com sede verdadeira.
Já tinha acontecido ver dois colegas procurando briga e quase partindo pra cima um do outro. Foi se aproximando sem dizer nada, ficou tão perto dos briguentos que, em plena discussão, olharam pra ele; era o que esperava: abriu aquele sorriso espontâneo, imenso, cheio daquela magia, como a dizer: pra que isso? Deixa disso!
Desceu sobre os briguentos, de repente, alguma coisa como água fria e acabaram rindo, meio envergonhados e esqueceram a briga. Tinha sido uma coisa estranha! Os colegas que tinham feito a roda foram se dispersando meio sem graça, sem conseguirem comentar o que acontecera. Ninguém entendia o poder de transmitir paz que ele tinha!
Algum tempo depois quase ia acontecendo de novo uma desavença, alguém foi chamá-lo pra fazer alguma coisa. Não fez nada, como de costume. Ficou por perto olhando. Viram-no, receberam seu sorriso e se foram...
Quem eram seus pais? Pessoas comuns, de vida modesta, discreta. Tinham vindo do norte, fugindo de uma rainha impiedosa que a tudo e a todos castigava. Tinham perdido o pouquinho da plantação que sobrara, tiveram medo de perder também a vida e resolveram fugir para longe daquela senhora tão severa! Gente simples.
Juntaram seus poucos pertences numa trouxa. O marido ajudou a mulher subir no lombo do jumento magro e foi puxando o cabresto. Era uma longa caminhada e a mulher não agüentaria caminhar com aquele barrigão até a cidadezinha próxima.
Ainda no caminho, a mulher começou a sentir sua hora, talvez pelo balanço do burro, e foram obrigados a pedir ajuda numa casinha próxima. Casinha de pau a pique, onde encontraram uma senhora idosa que morava com o filho. Na sua generosidade, a dona da casa ajudou-a a dar à luz ali mesmo naquele cômodo que servia de sala, cozinha e quarto, em cima de um catre já velho, em meio às vozes dos cachorros, patos e galinhas que circulavam no terreiro.
A velha senhora deixou que ficassem por uns dias e o pai repartiu com ela a carne seca e a rapadura que guardara para a viagem. Depois, a mulher se sentiu bem e foram seguindo viagem. Levavam agora um menininho, além das espigas de milho cozidas que a velha senhora lhes dera.
Já na cidade, vendeu a muito custo a montaria e com o dinheiro comprou as passagens para o sul.
A severa rainha continuava a castigar todo mundo. Não eram somente eles dois que estavam fugindo dela. No ônibus, muita gente queixava-se da mesma coisa.
- Eta, seca danada!
Era esse o nome da rainha perversa: Sua majestade a Seca!
Chegaram ao Sul, conseguiram por indicação de um companheiro de viagem um endereço de uma construção. O pai conseguiu trabalho e mãe e filho ficaram no alojamento até encontrarem um cômodo para morar. Foram ficando, melhorando devagarzinho e agora, aquele menininho recém nascido e tão frágil já sabia andar pelo bairro a distribuir sua alegria, sua bondade, compreensão e altruísmo.
Chegou o Natal. Em sua casa, não haveria festa nenhuma. O dinheiro pouco não dava para isso.
Mas na véspera, por onde passava, os donos das lojas o chamavam:
- Vem cá, você me ajudou muito, viu? Quero lhe dar um abraço, Obrigado. Leva essas laranjas pra vocês.
- Guardei um pacote de balas pra você. Obrigado por tudo.
O padeiro lhe deu uma rosca, a moça da loja uma camiseta; ganhou um pião e bolinhas de gude do dono do armazém. Ganhou uma vela branca da loja de Umbanda, pra acender no oratório.
O veterinário quis lhe dar um cachorrinho, mas não deu pra levar, não haveria comida suficiente pra ele. Ia saindo com os olhos compridos para o filhote e o doutor o chamou:
- Eu ajudo você com a ração. Leva, sim, você já me ajudou tanto!
Que alegria! Pegou o filhote, abraçou o veterinário e saiu sorrindo, correndo para mostrar aos pais.
Só falta contar os nomes da família:
O pai: José.
A mãe: Maria.
O menino chamava-se DIVINO.