A Criatura
"Ouço passos lentos que se misturam com os ovos burbulhando na caneca, sinto sua mão fria, dura em minhas costas, num estupor sou dominado pelo horror de menino, lenta, fumegante ela se senta no sofá enquanto descasco os ovos.
- O João nâo gosta quando sento perto dele, eu tento conversar e ele diz: " Vá lá ver TV", tento disfarçar a cruel realidade e meu sentimento de dor e pena, num amargor da boca como se tivesse um problema no fígado e também houvesse uma faixa prendendo minha caixa torácica, solto:
- Ele tem esse jeito estranho mesmo, parece não gostar de conversar.
Me vem um pensamento.
"Porco, ingrato, quando lhe era útil, você não tirava esse sorrisinho cínico desses lábios rachados".
Dominado pela cólera corto meu dedo com a casca de ovo, tenho um devaneio quando o sangue vivo se mistura.
Vida, morte.
Vou até ela, sento-me do seu lado.
-Os legumes estão cozinhando, já vou bater seu caldo.
Ela me olha profundamente por todo meu rosto, eu beijo sua testa e a afago em meus braços, seus dedos longos, finos, amarelos, seus olhos redondos, enormes, suas pernas pareciam duas varetas, a magreza já tinha levado seus seios.
Mesmo uma figura ala NOSFERATU, Murnau, Gregor Samsa, Agnes(Gritos e Sussuros), ela era a mesma, eu a amava e estava preparada para cuidar se sua doença terrificante, nâo estava preparado para vê-la tão minúscula naquele caixão, oca, inerte, como se fosse folha seca jogada ao mar, falta alguma coisa ali.
Sentiu a diferença por quem contava e foi acolhida e amada por quem não a esperava, o rebelde incompreendido, mas aquele que teve a dádiva de ouvir seus sussurros pela última vez.