Discrepância

Zími chegou em casa no domingo de manhã do rolê que fez sozinho.

Saiu do elevador às sete e trinta e cinco. No corredor do apartamento que dividia com Mila Cox, pairava densamente um cheiro que era misto de café, xampu e maconha.

Mila Cox já havia acordado e estava fazendo café, que certamente estava parecendo uma tinta, de tão forte.

No outro apartamento, Silvano ouvia Durutti Column, fumava maconha e provavelmente comia pizza da noite anterior.

Zími não esperava mesmo que nenhum dos dois estivesse dormindo. Era importante para ele ter pessoas que tinham entusiasmo pela vida e numa manhã de domingo já estavam a tramar algo.

Foi por acaso que no dia anterior, um sábado comum, em que sua banda Crop Circles não tocaria em lugar nenhum, Zími soube que rolaria, um show do Evan Dando, dos Lemonheads.

Pela mesma fonte, uma garota com camiseta do Tenage Fanclub que estava no Sebo do Messias, onde Zími foi trocar livros no sábado pela manhã, soube que os ingressos foram esgotados com antecedência.

Na tarde do sábado, Zími acompanhou Silvano num carreto perto do Ibirapuera, e teria tempo para colar no Sesc da Paulista para ver se arrumava algum ingresso, ou pelo menos visse algo curioso acontecer no entorno do evento. Em show de indie rock iam sempre as mesmas pessoas.

Na pior das hipóteses, ficaria na rua até cansar e depois voltaria para casa.

Havia para ele também a curiosidade de ver como estaria um sujeito que era ícone do que se chamava de rock alternativo em sua fase de maior projeção, através da MTV, trinta anos antes.

Ainda mais sendo esse sujeito alguém que passou por turbulências típicas de rock star, tinha fama de muito louco, continuava vivo, e àquela altura tinha repertório musical para fazer um bom show.

Zími levou cd’s de sua banda, os Crop Circles, que distribuiria entre os indies que passariam na Paulista para assistirem ao show.

Os cd’s eram geralmente usados por eles para fazer publicidade. Consideravam uma mídia física sem o apelo fetichista do vinil, mas o usavam para coletanear singles que lançavam na internet.

A maior parte do que vendiam de merchandising era mesmo em vinil de sete polegadas, prensados como singles ou EP’s.

Às cinco da tarde ele finalizou o serviço de carreto com Silvano, que o deixou vinte minutos depois na Paulista com a Brigadeiro Luís Antônio, próximo ao local do show.

Zími conhecia muitos camelôs da Paulista, porque ali, antes da pandemia, ele também vendeu livros e discos de vinil. Logo avistou um pintor de quadros que conhecia da Paulista havia muito tempo, e foi conversar para matar o tempo.

Certa vez, quando Zími era camelô de discos, a polícia pediu que os recolhesse. Ele recolheu e voltou dias depois, e quando nem pensava mais nessa proibição, teve um lote de discos apreendido por já ter sido advertido antes.

Mas ele gostava de vender ali. Para ele era um trabalho que, dependendo do dia, podia ser incrível, como também poderia ser dramático, como nos dias de chuva em que ele precisava do dinheiro das vendas para alguma necessidade imediata.

Faltavam duas horas para o show e ele estava do outro lado da avenida, de onde podia ver um movimento bem discreto de pessoas entrando e saindo do Sesc.

Sem ingresso, já não sabia muito bem o que estava fazendo ali. Já tinha visto uns clipes do Lemonheads pelo celular para lembrar melhor de algumas músicas, e apesar de achar legal, não seria nada doloroso se não pudesse entrar por falta de ingresso.

Agora estava conversando sobre o limite entre as aspirações e a realidade com o conhecido que vendia os quadros pintava, quando foi abordado por um casal. Ambos conheciam Zími, por motivos diferentes.

A diferença de idade entre eles era a mesma que havia entre Zími e sua parceira musical Mila Cox.

Pela aparência do sujeito, Zími poderia ficar por horas tentando sem sucesso lembrar de quem se tratava, e tinha certeza que nunca tinha visto a garota que o acompanhava.

Ele parecia um pai de família focado, distante de qualquer tipo de aventura, tinha a idade aproximada à de Zími, só que mais envelhecido.

A garota parecia uma Lydia Lunch jovem, e a falsa certeza que Zími tinha sobre nunca a ter visto antes vinha do fato de que jamais teria esquecido alguém como ela. Isso mesmo antes que ela começasse a falar. Zími não lembrava muita do show de Jaú.

Quem a acompanhava era Tito, que tocava guitarra numa banda chamada Mugwumps, dos anos noventa, em que Zími fez parte por um curto período, fazendo três shows que estavam marcados antes da saída do baterista anterior.

A banda já existia antes que ele entrasse, e continuou por algum tempo depois de sua saída, chegando a gravar um EP. Tito era o mentor da banda e sua ideia era que o som lembrasse o Social Distortion.

Tito se tornou delegado, e na época em que tocou com Zími era estudante de Direito, vinte e cinco anos antes. Ele já manifestava o desejo de ser delegado naquele tempo.

Havia uma piada interna na banda sobre Tito ser inacreditavelmente submisso à sua namorada na época, fazer músicas contra o autoritarismo, e querer ser delegado ao mesmo tempo. Zími tocou com os Mugwumps em São Paulo, Santo André e em Araçatuba.

Zími ainda era jovem e na época parecia precisar se aventurar naquela oportunidade, com uma banda sem logística para equilibrar o tempo entre ela e as outras atividades, como empregos e faculdades.

A internet ainda estava começando a se tornar acessível, e Zími só teria acesso à rede depois de ter deixado a banda.

Ele tinha terminado sua faculdade de Jornalismo no ano anterior, caso contrário não aceitaria o convite para ingressa na banda. Os outros integrantes ainda eram universitários, e seus cotidianos eram inglórios e hostis. Tudo era escassez, tanto em termos de dinheiro, como em tempo ou logística.

O baixista dos Mugwumps era um sujeito conhecido por Painho. Era tecnicamente o melhor músico da banda. Quando a escassez anteriormente se manifestava no setor financeiro da banda, Painho acusava Tito de ser playboy e não investir na estrutura da banda, nem mesmo sob a premissa de ser ressarcido com o lucro de um eventual sucesso da banda.

A mentalidade deles era esta, e a internet nos primórdios ainda não ajudava muito. As gravadoras deixaram de existir da forma como operavam, na época em que vender discos em lojas físicas era o foco.

Certa vez os Mugwamps perderam o tempo quase inteiro de um ensaio pago e a duras penas encaixado na agenda pessoal de cada um, porque não havia cordas de guitarra reservas, e os cabos estavam remendados em diversos pontos, falhando bastante, na véspera de um show em Santo André.

Painho estava furioso e foi trabalhoso o manter numa distância mínima de Tito, que escapou por pouco de tomar porrada.

Com essa lembrança, lhe ocorreu que esse momento possivelmente tornou possível a concepção dos Crop Circles, duo formado por ele na bateria e alguns vocais, e Mila Cox, no baixo e maior parte dos vocais.

Os Mugwumps eram um quarteto com duas guitarras, baixo e uma bateria de verdade, não o kit minimalista usado por Zími atualmente. Um gasto exorbitante se comparado ao que os Crop Cicles tinham na atualidade.

O fator mais importante nesse aprimoramento no formato da banda é o fato de haver apenas duas pessoas para eventualmente discordarem uma da outra. Zími não conseguia nem se imaginar atualmente numa formação com quatro pessoas.

O uruguaio Silvano se lançou na música ainda mais minimalista, como monobanda, ou one man band.

Toda a década de noventa sempre foi estranha para Zími, e ele ainda lembrava do período como se fosse a década anterior a que vivia então, mesmo estando vinte e três anos avançado no século vinte e um.

Perdeu o contato com Tito e os outros dois integrantes quando saiu da banda.

A garota que acompanhava Tito era sua filha Sara, de vinte anos e fruto do casamento com a antiga namorada autoritária, a quem Zími nunca conheceu pessoalmente.

Naquele tempo, Tito parecia deixar a garota num setor específico de sua vida social, que era distinto daquele em que colocava amigos de bar, de futebol e de banda.

Pois foi a esposa de Tito quem havia comprado três ingressos para aquele show no Sesc, tão logo este fora anunciado. Ela acabou não indo, porque era médica e estava de plantão, de modo que havia um ingresso para Zími.

Sara conhecia Zími porque foi a um show dos Crop Circles em Jaú, cidade onde vivia a avó da garota.

Quando Zími saía sozinho, sem muitas pretensões e recursos, mas com a intuição de que algo curioso aconteceria, ele acertava em cerca de trinta e cinco por cento das vezes, mas esse percentual aparentemente baixo era suficiente para que ele sempre acreditasse na generosidade do acaso. Na verdade, um acaso algo induzido.

Ele sabia que encontraria pessoas conhecidas ali, sendo amigos dele ou não.

Naquela tarde, no entanto, surpreendeu-lhe o fato da primeira pessoa conhecida ser alguém que ele não reconheceria, caso não tivesse sido abordado.

A filha de Tito queria comprar cerveja, então os três se despediram do vendedor de quadros e atravessaram para o outro lado da Paulista, na frente do Sesc, e não demorou para que um vendedor ambulante de bebidas passasse com seu carrinho.

Compraram uma cerveja para cada um, e a essa altura Tito já sabia que Zími ainda tinha a Caloi Cross laranja que já era antiga no tempo em que tocaram na mesma banda.

Tito e Sara já haviam ganhado também os cd's dos Crop Circles que Zími levou e estavam se atualizando sobre os últimos vinte e cinco anos sem terem quaisquer notícias um do outro.

À essa altura, Zími já tinha visto por perto algumas pessoas com camisetas de bandas indies dos anos noventa, algumas pessoas que já tinha visto em rolês aleatórios de rock, amigos de amigos.

O show foi o que Zími esperava. Achou legal por ser despojado, sem excesso de pretensão calcado no que importava naquele momento, que era um repertório que sustentasse a apresentação.

Ele não era muito mais velho que Zími, que estava beirando os cinquenta anos, e era curioso como mesmo havendo uma discrepância na história e na realidade de cada um, Zími se identificou com o show, não apenas a apresentação em si.

Havia a atmosfera nostálgica do sonho indie dos anos noventa, mas toda a década de noventa sempre foi estranha para Zími, e ele ainda lembrava do período como se fosse a década anterior a que vivia agora, mesmo estando vinte e três anos avançado no século vinte e um.

Não era para ele um período remoto, pois no começo da década de noventa atingiu a maioridade e havia nele curiosidade e energia.

Sara nasceu em dois mil e dois, com internet. Ela contou a Zími que sua mãe falou muito do Evan Dando nos dias anteriores, e que ela havia mandado mensagem avisando que ficaria no plantão até às oito horas da manhã seguinte.

Saíram do show e foram beber num bar da Liberdade que não fecha nunca, ótimo por ser próximo ao prédio de Zími.

Tudo que foi conversado fez parecer para Zími que ao reencontrar Tito, os últimos vinte cinco anos nunca existiram.

Sara despejou o discurso sobre a família ser uma instituição decadente e a manifestação do seu desejo de ir embora de casa crescia à medida em que bebia.

Tito estava cansado e bêbado, tendo que dirigir até o Sumaré, pois a filha, além de furiosa, também estava alcoolizada. Os três pagaram a conta e se despediram. Eram sete e vinte da manhã.

Zími foi a pé sem olhar para trás, enquanto Tito e Sara entraram no carro.

Quando chegou às sete e meia na porta do prédio, Zími havia tido tempo de pensar que seu destino foi melhor que o de Tito, principalmente quando lembrou que a esposa dele estaria em casa às oito horas.

Zími entrou no elevador e saiu para o corredor com cheiro de xampu, maconha e café e para o seu destino que era melhor que o de Tito.

Fernando Barreto de Souza
Enviado por Fernando Barreto de Souza em 09/05/2023
Código do texto: T7784316
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