Jerônimo, herói do fuscão
Munhoz, bar da curva da Contorno, bairro Santo Antônio, Belo Horizonte, planeta Terra. Tempos de ditadura. Na baixada, passa o córrego do Leitão, mais tarde Av. Prudente de Morais, na Cidade Jardim. Por ali, um dos nossos heróis pulava a cerca, quer dizer, o córrego, pedra ante pedra, e ia aprender línguas e literaturas na Faculdade de Letras da UFMG. Naquele tempo, os amores eram para sempre. Brígida, Dadaça e Ny estavam na fita e já tinham pretendentes: Doutor, Padreco e Boleiro. Eles também amavam Beatles, Bee Gees e Rolling Stones.
No Munhoz lotado, a patota incensa as deusas. Conversa vai, brama vem, o horizonte parece alargar-se, tudo é possível. Basta pagar a conta, sair para a rua e cantar loas às bem-amadas na volta para a pensão. E esnobam: as canções são em inglês, italiano ou francês, línguas de época.
Mas alguém iria entrar na conversa sem ser convidado. Jerônimo, herói do Santo Antônio, não compactua dessa felicidade. Possivelmente não acredita em Deusas. Junta sua gangue toda noite e sai a patrulhar seus domínios no fuscão cinza, cara do dono. Ao passar em frente ao Munhoz, vê gente estranha e feliz a caminho da rua Celso Werneck. Jerônimo acelera o fuscão, alcança os folgadinhos, canta pneu na freada, abre as portas e brada, já fora do carro:
- Qual é o problema? Que alegria é essa? Cheiraram o que?
Chega a ouvir uma voz desafinada cantando: Ny, oh oh oh my love, Ny my love, Ny... only my love... Abusados, cantando em inglês no Santo Antônio, entre Lourdes e Cidade Jardim... Vão aprender a respeitar terra alheia, ah se vão...
Doutor, o mais velho, estudante de Direito, tenta argumentar, cita Rui Barbosa e outros. Não, não ia dar certo, Jerônimo não estava pra diálogo. Boleiro desvia o foco:
- Esse bairro tá virando uma zona. Muitos grupos, nenhuma coordenação. Nós por exemplo, somos lá do Coração de Jesus, viemos aqui a negócios. Marcamos com o Delvale e você parece que nem foi informado... Ninguém te avisou?
Todos se entreolham, os quatro do fuscão não entendem nada, quem será Delvale, Padreco e Doutor muito menos. Será que Boleiro tinha ficado louco? Padreco não quer conversa. De repente, sem combinar com os russos, chama a responsabilidade para si. Aproveita a confusão geral, corre pela Celso Werneck e some na curva da pracinha. Jerônimo e um outro entram no fuscão, cantam pneu pra marcar terreno. Jerônimo sai vociferando atrás do safadinho.
- Seus comunistas, aquele lá me paga. Rafa e Zeca, tomem conta desses dois.
Doutor e Boleiro ficam, agora são dois contra dois. Trêmulo, imaginando a surra que vão tomar, Boleiro tenta uma piada:
- Doutor, guarda os óculos, a gente só tem esses. Tá caro lente de grau...
Abaixa o tom de voz e cochicha:
-Tá dois contra dois.
Dobra e coloca os óculos no bolso da camisa, era o mesmo que dizer: dessa não escapamos... se lá se vão os anéis, pelo menos se salvam os óculos.
Boleiro continua enrolando, reclama da falta de coordenação dos bandos, Doutor captou a mensagem e estica a conversa, eleva a voz. A falação atravessa a meia-noite e perturba um vizinho. Da janela de um dos sobradinhos, aparecem uns cabelos brancos de pijama:
- Rafa, que barulheira é essa? Já é tarde, sobe logo.
Rafa obedece, o pai não está para brincadeira. Agora são dois contra um, o jogo virou, o ultimo dos adversários percebe e sai em silêncio.
Ufa, livres outra vez, Doutor e Boleiro vão ansiosos ver o que passou com Padreco. Na porta da pensão em polvorosa, o fuscão de Jerônimo estacionado. Ele e o dono da pensão, um professor muito severo, conversam. O professor dá lição de moral em Jerônimo. De relance, ao entrar no portão da casa, Boleiro vê um 22 no porta-luvas do fuscão.
Lá dentro, todos os pensionistas acordados, já se inteiraram de que Padreco sumiu no mato, só apareceu de madrugada, o corpo todo arranhado. Estão ansiosos por saber o que aconteceu.