TRÊS MOMENTOS MUSICAIS
Momento I — Mal Necessário
“Sou o novo, sou o antigo, sou o que não tem tempo
O que sempre esteve vivo, mas nem sempre atento
O que nunca lhe fez falta, o que lhe atormenta e mata
Sou o certo, sou o errado, sou o que divide”.
Tibouchina mutabilis é o nome da planta. Na cidade onde Saulo trabalhou como funcionário público, lá nos anos noventa, ela estava presente em todos os jardins, tanto os das praças, quanto os dos quintais. Parece que cada cidadão recebia uma muda para plantar em sua casa assim que começava a construção. Mutabilis, porque suas flores, bem cheirosas, mudam de cor ao longo de suas existências, enquanto flores.
Conhecidas como manacás, essas plantas demoram alguns anos para crescer e florir. Combinavam com a cidade. Povo conservador, cheio de tradições centenárias, ainda usavam uma particular comunicação de serviços públicos através dos sinos, comum em cidades antigas do interior mineiro.
Para Saulo, o perfume dos manacás se tornou símbolo da mesmice, da pasmaceira e das relações entre as pessoas da cidade. Na verdade, era ele que não estava muito à vontade. Parecia não caber no lugar. Chegou sozinho à cidade, logo após uma doída separação da mulher e dos filhos. Talvez por isso, transformou-se na atração do mulherio solteiro, que via nele um bom partido.
Mesmo o assédio era um símbolo da violência enrustida na cidade. Pois com o assédio, as mulheres sofridas pelo paternalismo exagerado e proprietário, viam nos forasteiros uma chance de fuga, da cidade e daquela vida.
Plantígrado que é, Saulo caminhava pelas ruas, de antigas casas, iluminadas com luzes de lampiões, um belo cenário nas manhãs neblinadas. O antigo grudado até na neblina, e ele era o moço que chegava e não ficava por não ser o certo, nem o errado, mas o que dividia opiniões por ser aquela “metamorfose ambulante”, no lugar errado.
O limite de sua paciência foi ultrapassado quando a mulher do Ford Escort XR3, vermelho, novo, ano noventa e dois, o convidou do bar para a cama, e o deixou na lama das ilusões perdidas. Saulo se mandou de lá e nunca mais voltou.
“O que não tem duas partes, na verdade existe
Então esquece o que lhe fazem
Nos bares, na lama, nos lares
Na cama, na cama, na cama”.
Momento II — Down em mim
“Eu não sei o que o meu corpo abriga
Nestas noites quentes de verão
E nem me importa que mil raios partam
Qualquer sentido vago de razão”.
Cazuza foi um ídolo de seu tempo. Nunca foi o ídolo de Saulo, que achava suas letras e músicas deprimentes. A vantagem dele era sempre dar um tapa na cara da hipocrisia. Não era o que Saulo procurava. Tudo que ele queria era sair daquele desassossego que o importunava e deixar para trás a solidão das noites escuras.
Nessas noites seu destino era sempre sua casa, para onde seguia a pé, contando os pés de dama da noite do caminho, cujo perfume o deixava meio bêbado, mesmo não sendo apreciador de bebidas alcoólicas. Mas acordava sempre com aquele gosto de cabo de guarda-chuvas na boca, provocado, segundo ele, por ressaca daquele perfume.
Talvez tudo que se passava naquele tempo fosse apenas “pelo sentido vago de razão”, comum nos grandes momentos de transformação. Acontece com todo mundo. É o tempo do Cazuza, ou melhor, do casulo, que poderia se desabrochar nas chuvas de verão que se seguiriam. Um banho de chuva no calor da tarde poderia trazer de volta a verve sedutora e inquieta desse personagem, mesmo com o perfume de dama da noite nos caminhos de volta para qualquer lugar que fosse. O lugar não importa, Saulo o sabia. O que sempre importa é o preenchimento da alma vazia.
Momento III — Águas de março
“É um passo, é uma ponte, é um sapo, é uma rã
É um resto de mato na luz da manhã
São as águas de março fechando o verão
É a promessa de vida no teu coração”.
Veio o verão. E o banho de chuva em uma tarde quente. Desses de lavar a alma de dentro e o corpo de fora, externando aquela vontade de fazer acontecer. Saulo pôs o pé na estrada e partiu pelo mundo. Conheceu “Europa, França e Bahia”. E a América, a Latina e a da latrina do mundo, tecnológica e fantasiosa. Todas as combinações são possíveis.
Durante as águas de março as damas da noite ainda estão presentes, no entanto, não perturbam. Sua essência na alma de Saulo é substituída pelos pés de goiaba, pela calma da beira de rio, antes e depois das enchentes, e pelos pássaros bicando goiabas maduras nas árvores. Mesmo o céu avermelhado das tardes depois das chuvas é alentador, é um signo de esperança, e da “promessa de vida no coração”.
Todos os momentos são passageiros, claro. Todos eles foram, e são, cantados em músicas, encenados nos teatros, contados em rodas de conversa, escritos nos romances de todas as línguas do mundo. Apesar das semelhanças dos relatos, eles são vividos diferentemente por cada um que sempre considera sua experiência única. Como alegrias nunca veem sozinhas, as águas de março trouxeram pessoas, bichos, objetos, tudo isso formando uma bolha interativa que nos faz viver plenamente. Se a bolha estoura, outras se formam. A alegria sendo a mesma, a bolha se conforma a seus habitantes. Essa bolha se chama mundo.
A transformação esperada, como sempre, veio. Com a chuva, que traz vida e desastres. A questão agora, para Saulo, era continuar com as plantas dos pés no chão, mesmo mantendo sua cabeça nas nuvens, como sempre. Caminhar até um dia encontrar seu pedaço de chão, quem sabe colocar uma cadeira sob o pé de manacá da serra, que também encontraria em seu quintal, e esperar as estrelas trazendo o cheiro de damas da noite.
“É a chuva chovendo, é conversa ribeira
Das águas de março, é o fim da canseira
É o pé, é o chão, é a marcha estradeira
Passarinho na mão, pedra de atiradeira”.
Paulo Cezar S. Ventura (pcventura@gmail.com — @paulocezarsventura)