O Leão na Fazenda
Aconteceu, ontem, numa fazenda situada, e localizada por aqueles que, por ela procurando, têm a sorte de a localizar, ou a de a localizar acidentalmente, no município de Pindamonhangaba, cidade encantadoramente aprazível, apesar de seus incontáveis problemas, encravada no Vale do Paraíba, e banhada pelo rio que ao vale dá nome, e vizinha de Taubaté, terra natal de um personagem popular e muito querido dos brasileiros, um evento extraordinariamente inusitado, incomum de tão espetacular, de despertar espanto em todas as pessoas que dele tomam conhecimento, parecidíssimo com um episódio, retratado em livros, que se deu, há décadas, no Sítio do Picapau Amarelo, mas com um exemplar de outra espécie animal: um leão adentrou os domínios da fazenda Santa Luzia, em tempos avoengos um reino encantado de monarquistas aristocratas de uma família de barões e viscondes amicíssimos de Dom Pedro II, e cuja casa principal era um palácio exuberante de fazer inveja ao de Versalhes. Hoje, com o declínio dos cafezais, empobrecendo a poderosa família Medeiros de Souza, a sua proprietária original, nobiliárquica, dinástica, descendente de nobres franceses, austríacos e dos de Castela e de Aragão, e dela restando apenas um indivíduo que lhe carrega o sangue, o senhor Manoel Bartolomeu Andrade Medeiros de Souza, está a fazenda abandonada, as duas casas caídas aos pedaços, e dela o estado, tão deplorável, que os do povo do entorno a apelidaram Fazenda É Mato Só, e ao seu proprietário, o herdeiro, único ainda vivo, mas que não pretende viver sequer outro lustro, pois já pôs um pé na cova, deram a alcunha Mané Cupinzeiro do Matagal.
A antiga fazenda, centenária, construída pelos tataravós do senhor Mané Cupinzeiro do Matagal, conta com uma casa antiga, de pau-a-pique, razoavelmente bem conservada, e a casa principal, de madeira de lei, caindo aos pedaços, rodeadas, ambas as casas, por palmeiras e abacateiros e abiuzeiros. Na era áurea do Império era a casa principal uma construção de exuberância ímpar em todo o Vale do Paraíba. Seu desenho arquitetônico tem a assinatura de mestres europeus da arquitetura, italianos e franceses, que para cá vieram de encomenda, mantidos pelo patriarca, e aqui exerceram seu ofício com a dedicação que deles fazia a fama universalmente reconhecida e aqui encantaram-se com a natureza exuberante e com as coisas populares, que lhe atraíram a atenção pelas suas incomuns singularidade e originalidade. Sua entrada principal, localizada, por aqueles que a conseguem localizar, na entrada, que também serve de saída, pois não possui a fazenda outra entrada, que possa, servindo de entrada, servir de saída - assim sendo, todas as pessoas entradas na fazenda para dela saírem têm, obrigatoriamente, de irem pela entrada principal, que é a única entrada existente -, está, tal qual a fazenda, num estado deplorável, o portão quase que inteiramente desfeito em pó, e envolta por um matagal, que a oculta até dos olhos bem-treinados, e é um ninho dos mais repulsivos animais peçonhentos, quase que por completo circundado por cupinzeiros, que lá se ergueram desde o tempo que Euclides da Cunha andava pelo mundo dos vivos, havendo entre eles alguns corredores estreitos pelos quais veículos de pequeno porte passam, os motoristas a cuidarem para evitar acidentes.
O tom levemente jocoso do relato que até aqui se lê tem a sua razão de ser: o autor, conquanto queira emprestar-lhe seriedade, sempre que lhe vêm à mente a imagem do senhor Manoel Bartolomeu Andrade Medeiros de Souza, lembra-se que é ele o senhor Mané Cupinzeiro do Matagal, e ri, e gargalha, consigo mesmo, e esquece-se de que está a dar aos seus leitores, que são poucos, um relato de um capítulo singular da cidade de Pindamonhangaba, o que dele exige seriedade, que ele conserva consigo durante o tempo que lhe foge dos pensamentos a figura do último descendente dos outrora poderosos e bem-quistos e respeitáveis, e veneráveis, não erro em dizer, Medeiros de Souza. Além disso, para descrever a fazenda Santa Luzia tem de puxar pela memória o que dela conhece e à mente lhe vêm a imagem de uma fazenda, cujas terras estão repletas de mato e de cupinzeiros e cuja casa está, caindo aos pedaços, reduzida a escombros, com a figura de castelos abandonados por cujos corredores e por cujos salões e cômodos caminham abantesmas, quimeras, almas-penadas e outras criaturas que, saídas do reino dos espíritos, sobem, ou descem, à terra para se ocuparem de perturbar os homens. A imagem que tem da fazenda não é a dela em seu apogeu, a Fazenda Santa Luzia, mas a de agora, a da Fazenda É Mato Só. Ri, lamentando, sempre, a decadência de família tão nobre, amiga do Imperador, hoje reduzida a um descendente, sujeito desmiolado, grotesco, estúpido e vagabundo, risível e patético.
Não consegue o autor, por mais que o queira, e o deseje, dar um tom sério ao relato, deixar de tecer comentários jocosos - que o agradam, não pode faltar com a sinceridade -, e dizer: a pessoa que, já dentro do território da Fazenda É Mato Só, do proprietário dela exige sair por uma saída, e não pela entrada, e não a encontrando, pois uma saída ela não tem, tem de, obrigatoriamente, contrariada, e a contragosto, permanecer nos domínios dela até o dia do Juízo Final, ou até o dia em que ele se dignar a construir-lhe uma saída - isto é, nunca.
A casa principal tem vinte e seis cômodos: o do quarto do casal, e outros onze quartos, duas cozinhas, uma sala-de-estar, uma sala-de-visitas, uma sala-de-jantar, sete banheiros, um cômodo para as máquinas de lavar roupas, e um salão. É imensa, grandiosa, a construção, que, mesmo encontrando-se num estado deplorável, conserva a sua estrutura, de admirar, e o que dela resta permite que toda e qualquer pessoa em imaginação reconstruindo-a em seu esplendor, visualize-lhe as dimensões orignais e a maravilhosa arquitetura e seu luxo faustoso.
Não são cômodos seus cômodos, e neles não se pode se acomodarem adequada e apropriadamente os visitantes, que, incomodados pela ausência de comodidades, retiram-se da casa tão logo nela entram. Ah! Raios! Macacos me mordam! Não consigo evitar a redação de bobagens para descrever a Fazenda É Mato Só! E posso superar a tentação de lhe tecer, e ao seu proprietário, comentários desabonadores, se a sua figura mos inspiram e me desperta o riso?! Guerra infrutífera. Inglória.
Sigamos: Tem a casa principal setenta e quatro janelas e dezessete portas externas, todas de madeira de lei, escangalhadas todas as portas e as janelas; no assoalho há frestas pelas quais passam, livremente, como se donos da casa fossem, formigas, mosquitos, tatus, cupins, lacraias, percevejos,e cascavéis, ratos, gambás, camundongos e ratazanas, e outros bichos peçonhentos com cujos caminhos Adão e Eva jamais tiveram o prazer de cruzar.
Apesar dos pesares, e são inúmeros os pesares, para certas pessoas, tipos excêntricos e aventureiros, a Fazenda É Mato Só é um recanto aprazível, idílico, o paraíso edênico, bíblico.
No raro o senhor Manoel Bartolomeu Andrade Medeiros de Souza, ou, mais apropriadamente dito, o senhor Mané Cupinzeiro do Matagal, que tem os domínios da fazenda É Mato Só sob o seu domínio, e sua esposa - de quem só agora trato -, a amável senhora Maria Joaquina, mulher de voz maviosa, e estrábica, e dentuça, e enxundiosa, acolhem seres incomuns, de gostos peculiares, pessoas que, de tanto amor têm pela natureza, pagam fortunas para pernoitarem da casa em seus quartos cujos assoalhos e forros oferecem passagem livre, desimpedida, para criaturas que, habitando o porão e o sótão escuros e tétricos, toda noite, e boa parte do dia, sobem e descem para os quartos e outros recantos da casa. As criaturas peçonhentas,que muito medo provocam em pessoas sensíveis, para os aventureiros nada significam; aliás, para eles elas são elementos que lhes despertam sensações epidérmicas de contato com o que há, na natureza, de simultaneamente mais terrível, assustador, e mais formidável, tranquílo, assim os inserindo na natureza em seu esplendor. E tais pessoas, à noite, enquanto dormem, adoram que lhes passeiem por sobre os corpos adormecidos aquelas criaturas que em muitos causam repulsa.
Está localizada a Fazenda É Mato Só à distância de vinte quilômetros do marco central do município de Pindamonhangaba, o da sua fundação, que está, à distância de vinte quilômetros da fazenda É Mato Só. Toda pessoa espanta-se, e embasbaca-se, e estupefaz-se ao ser de tal informada, e, incrédula, suspeita da veracidade de tais informações e de quem lhe presta o valioso serviço de, informando-lhes a respeito, chamarem-lhe a atenção para tal detalhe.
Não resisti. Tive de escrever as bobagens que o leitor leu no parágrafo anterior. Não resisti.
O território da Fazenda estende-se por uma vasta área, de, calcula-se, cem mil metros quadrados, todo coberto de mato, e de cupinzeiros, e de árvores centenárias, algumas nativas, que lá estavam antes de desambarcar, aqui, no Brasil, os primeiros homens vindos de Portugal. É coberto de colinas suaves, de cujo topo os visitantes têm uma visão panorâmica da área circunvizinha, encantadora, maravilhosamente idílica, que lhes inspira sentimentos nostálgicos de uma antiga era, que não viveram, mas que a memória da espécie, recôndita, os faz recordar.
- Deixe de lero-lero, e fale-me do leão na fazenda - o leitor repreende o autor,compreensivelmente irritado com ele.
E calmo, o autor lhe diz, para tranquilizá-lo:
- Não se preocupe, querido leitor. Da fazenda o leão já se foi.