O Galo Cantor

Ontem, domingo, para mim um dia festivo. Para mim, e para o Francisco Chiquinho, o meu galo de estimação, que eu vi ainda em ovo, filho da Domitila de Castro, majestade galinácea de origem divina que presenteou o mundo com centenas de bípedes emplumados, muitos deles a me servirem e à minha família de refeição salutar.

Salvamos da panela, para preservarmos em nossa memória a lembrança daquela galinha que muito bem nos fez, falecida, há quatro anos, de causas misteriosas, um de seus descendentes, o meu querido Francisco Chiquinho, galo imperial, amigo-do-peito de Rui Barbosa, garnisé dos melhores que há no mundo, dono de uma prosa encantadora, elegantemente barroca, e do Barão do Rio Branco, leitão diplomático, e do José de Alencar, pato romântico, e do José Bonifácio, marreco, um intelecto fenomenal, de ar científico. É o meu amigo um portento de sua espécie. Seu porte, altivo; suas esporas, lâminas afiadíssimas. Suas penas reluzem ao Sol. Coroa-lhe a majestosa cabeça crista real. É majestoso. Sua robustez, a de um guerreiro viking. Tem em si a força da natureza. Ontem, no entanto, ao chegar, do trabalho, um pouco depois do meio dia, em casa, eu o vi a caminhar cabisbaixo, de olhar perdido, tristonho, desenxabido, a pontapear pedrinhas. Incomodou-me o caiporismo do Francisco Chiquinho. Coitado! Também pudera! Na quinta-feira, invadiu-nos, assim que meu filho varão abriu a porta, e, sem mais nem menos, sem o saudar com um "Bom dia.", sem pedir-lhe licença, a chácara um canzarrão monstruoso, que logo tratou de ir para cima da consorte do Francisco Chiquinho, a dona Joana Joaninha, galinha vaidosa e arisca, e, sem lhe dar chance de emitir um "có", fincou-lhe no pescoço os dentes, matando-a. Francisco Chiquinho assistiu à cena, impotente. Expulsamos da chácara o grotesco assassino da dona Joana Joaninha. E fomos consolar o viúvo. Foi triste. Respeitamos o luto do Francisco Chiquinho, de quem não apreciei, ontem, o ar sorumbático. Eu o entendia. Tinha ele razão de estar triste, eu sabia. Mas eu tinha de fazer alguma coisa, qualquer coisa, para animá-lo. Lembrei-me que eu comprara, na véspera, sábado, ou na antevéspera, sexta, ou quinta, refrigerantes, cervejas, pão de alho, e carne. Eureka! Iluminou-se-me a lâmpada da inteligência. Eu, agora, sabia o que eu teria de fazer para tirar o Francisco Chiquinho daquela fossa. Ele estava muito deprê. Eu iria preparar-lhe um churras. Dei-lhe a notícia. E eu o ouvi me dizer: "Demorô." O meu amigo emplumado beberia cérva e refri. Que ele bebesse o que desejasse, e se animasse. Tratei, e logo, de preparar o churrasco. Com as minhas mãos de mestre-cuca, depositando em minha tarefa todo o meu amor pelo meu velho amigo, logo a conclui. E chamei-o. Tratamos, e sem moderação, de enviar para o estômago voraz, insaciável, carnes e mais carnes, cervejas e mais cervejas, refrigerantes e mais refrigerantes, pães-de-alho e mais pães-de-alho, e o que mais encontrávamos ao alcance, eu, da minha boca, o Francisco Chiquinho, de seu bico. Que churrasco! O melhor do mundo! O Francisco Chiquinho é bom-de-garfo e bom-de-copo. E nós, amigos, e amigos-do-peito, abraçamo-nos, e abraçamo-nos calorosamente. E cantamos, animados: "Chiquinho é um bom companheiro! Chiquinho é um bom companheiro!" E logo após este dueto, o Francisco Chiquinho, ô galo maravilhoso! meu amigo-de-longa-data, que eu conheci ainda em ovo, seu berço, cobriu-se com uma tira de pano, branco, que lhe assumiu a função de jaqueta e calça, envolveu os pés com tufos de algodão a imitarem sapatos, salpicou-lhe flores vermelhas e azuis e amarelas, à modo de lantejoulas, lambeu as asas e passeou-as pela crista, ajeitando-a, tornando-a escorrida sobre a cabeça, tirou do varal colares coloridos da senhora minha consorte, e as pôs ao pescoço, pegou de uma vassoura, e fazendo-lhe a vez de um microfone, revelou-se-me um cantor talentoso, versátil, e dançarino hábil, e imitador irrivalizado. Com o talento de um Fred Astaire, ele cantou, com voz simultaneamente rascante e melodiosa, Suspicious, executando-a numa imitação impecavelmente perfeita do Elvis Presley: "We're caught in a trap / I can't walk out / Because I love you too much, baby / Why can't you see / What you're doing to me / When you don't believe a word I say?" Impecável! Elvis redivivo. Elvis não morreu! Vibrei de emoção ao ver o meu amigo a cantar uma canção que fez a fama do Rei do Rock. Que talento invejável o do meu amigo Francisco Chiquinho! Assim que encerrou a sua perfomance, tratou de retirar de si as tiras de pano, os tufos de algodão, os colares, despojou-se da figura do cantor americano, que não morreu, e assumiu ar grave. Na expectativa, curioso, perguntei-me que surpresa ele me reservava. Surpreendeu-me o Francisco Chiquinho. Com voz enrouquecida, ele pôs-se a cantar: "Não posso ficar nem mais um minuto com você / Sinto muito amor, mas não pode ser / Moro em Jaçanã." Diante de mim, o Adoniran, o nosso querido Adoniran Barbosa, a cantar um dos seus maiores sucessos. Eu o ovacionei. Amo o Adoniran. Pela primeira vez na minha vida eu tinha diante de meus olhos o meu ídolo. Francisco Chiquinho encerrou a canção. Pedi-lhe biz; e ele não se fez de rogado. Com um sorriso fraternal, cantou-me uma vez mais Trem das Onze, e ao encerrá-la, cantou, sem perda de tempo, e com igual desenvoltura, Saudosa Maloca. Uma vez mais, eu o ovacionei. Eu o aplaudi, até doer-me as mãos. Levei os dedos à boca, e assobiei, e assobiei, e assobiei. Não precisei pedir-lhe biz, pois ele me ouvira os pensamentos, que gritavam, e os gritos alcançavam os ouvidos de quem, naquele momento, estava em Atenas, e cantou, uma vez mais, a canção. Ao encerrá-la, foi à mesa, pegou de seu copo, então vazio, e pediu-me que eu o enchesse; e eu lho enchi com o mais puro malte, néctar dos deuses, néctar que fazia a delícia do engraçadíssimo Mussum. E o Francisco Chiquinho emborcou o copo, e virou para dentro da goela toda a bebida que nele havia, esvaziando-o de um só gole. Largou a vassoura, pôs sobre a cabeça um dos barquinhos de papel de meu filho mais novo, e, movendo as mãos como se manuseasse uma sanfona, soltou, num vozeirão que eu jamais lhe suspeitara, bravo, forte, exibindo força telúrica, como se o chão o alimentasse: "Quando oiei a terra ardendo / Qual fogueira de São João / Eu preguntei a Deus do céu, uai / Por que tamanha judiação?" Maravilhoso! Bravo! Meu Deus! Emocionado, eu ouvi o Luis Gonzaga a cantar a música que me fez evocar a terra dos meus avós e vir lágrimas aos meus olhos. Quantas vezes eu não ouvi meu avô a cantar, nostálgico, Asa Branca! Quantas!? E aos olhos vieram-me lágrimas ao ouvir Francisco Chiquinho, com a voz do Rei do Baião, a cantar os trechos "Que braseiro, que fornaia / Nenhum pé de prantação! Por farta d'água perdi meu gado / Morreu de sede meu alazão", e "Adeus, Rosinha / Guarda contigo meu coração", e "Espero a chuva cair de novo / Pra mim vortar pro meu sertão." Emocionei-me. Lembrei-me de meu avô, que há quatro anos Deus levou. Abraçou-me Francisco Chiquinho ao ver-me entristecido. E beijou-me, carinhosamente, a testa. Encarregou-se de de mim afugentar a tristeza que a canção me inspirara. E o que ele fez? Cantou. E qual música ele cantou? Agora, sem o barquinho de papel sobre a cabeça, passou no rosto carvão, pintando barba e bigode, amarrou ao ventre um travesseiro, e encheu o peito. Que surpresa me reservava o meu velho amigo? Com a voz dos trovões, cantou, de Rossini, Figaro. Assumiu ele as dimensões do admirável Pavarotti. Cantou Figaro! A imitar Pavarotti! É um tenor o Francisco Chiquinho. Ele mandava ora um lá, ora um ré, ora um fá, ora um sol, ora um si. Sei lá eu quantas e quais são as notas musicais. Sei, apenas, que o Francisco Chiquinho é um tenor, e dos melhores que já ouvi. Que portento! "Largo al factotum della città / Largo! La la la la la la la la! / Presto a bottega che l'alba ì già / Presto! La la la la la la la la!" Não me contive. Sai a, batuta à destra, partitura diante de meus olhos, reger, tal qual von Karajan, a orquestra. E chegou Francisco Chiquinho ao "Ah' bravo Figaro! / Bravo bravíssimo! / Bravo! La la la la la la la la!"; e eu a rodopiar em sentido horário, o mundo a girar em sentido anti-horário, segui, conservando-me, milagrosamente, em pé, até o "Figaro, Figaro, Figaro, Figaro, Figaro, Figaro, Figaro, Figaro, Figaro, Figaro", e fui ao chão, a sorrir, a cantarolar. Ajudou-me a me levantar Francisco Chiquinho. Em pé, o mundo a girar ao meu redor, pedi ao meu amigo nova canção, e ele vêm-me, para a minha alegria, com o Funiculì Funiculà. Ao ouvir-lhe da boca as primeiras palavras da animada canção, "Aissèra, Nanninè, me ne sagliette / Tu saie addò? Tu saie addò?", fugiu-me de sob os pés o chão, e cai, sentado, na grama, e assim fiquei até encerrar o meu galinho de estimação a canção, eu a fazer a vez de von Karajan. Seguiu-se a cantoria. Ouvi Francisco Chiquinho a cantar, e a cantar, e a cantar, com sua voz de tenor, sua voz maravilhosa, estupenda voz, o Figaro e o Funiculì Funiculà. "Bravo! Bravo! Bravíssimo!", eu assim exaltava o meu fraternal galinho, que estava às voltas, certo que com o estímulo do malte e da cevada, com as suas naturais alegria e animação, que se elevaram assim que ele se desfez do travesseiro e removeu do rosto a camada de carvão que lho cobria, e tratou de vestir uma saia multicolorida - e peço a Deus que minha esposa jamais venha a saber da insensata, desrespeitosa e despudorada ousadia do meu amigo emplumado - e ajeitar sobre a cabeça um cacho de bananas, um abacaxi, duas mangas, um pedaço de cana, um cacho de uvas, um abacate, duas tangerinas, duas maçãs, um coco, um bom punhado de jabuticabas, um kiwi, metade de melancia, e açai, e guaraná, e, com a desenvoltura de Philippe Petit, a repetir os trejeitos da Pequena Notável, com suas caras e bocas, numa voz fina, cativante, a mover-se num ritmo contagiante, carnavalesco, sem intervalos para respirarmos, cantar Mamãe Eu Quero. Íamos de um lado para o outro, ora a travarmo-nos um o braço do outro, e a rodopiarmos, eu a acompanhá-lo a cantar "Mamãe, eu quero, mamãe, eu quero / mamãe, eu quero mamar / Dá a chupeta, dá a chupeta / Dá a chupeta pro bebê não chora." Ríamos, à beça. De tanto rir, ambos os dois rachávamos o bico. Gargalhamos ao cantarmos "Eu tenho uma irmã que se chama Ana / De tanto piscar o olho, já ficou sem a pestana." Não me aguentei em pé. Perdi o norte. Perdi o rumo. Perdi o prumo. Onde estava o chão?! Onde o céu?! Fui ao chão. Ora, tenho uma irmã que na pia de batismo recebeu o nome Ana. E no chão, caído, a sorrir, a gargalhar, a cantar, acompanhei o Francisco Chiquinho a cantarolar, ele a fazer-se de Carmen Miranda, o Zequinha: "O tico-tico tá / Tá outra vez aqui / O tico-tico tá comendo / meu fubá / O tico-tico tem, tem que alimentar / Que vá comer umas minhocas no pomar." Revelou-se-me o Francisco Chiquinho mímico de primeira, fora de série. Senti-lhe firmeza ao fingir-se um pássaro a ciscar o chão, a remover terra, e a retirar de um buraco um bom punhado de minhocas, e a engoli-las. Se não o conhecesse tão bem como conheço as palmas de minhas mãos, eu diria que ele é um pássaro. Sem fôlego, ambos nós dois, após cantarmos, três vezes, as duas marchinhas, pedi-lhe ajuda para me levantar. Ele ajudou-me com a presteza de um velho, e querido, amigo. E eu o derrubei. E espalharam-se pelo chão as jabuticabas, as mangas, as uvas, as bananas, o abacaxi, a cana, o kiwi, a melancia, as tangerinas, o abacate, as maçãs, o guaraná, o coco, o açai. Se não me falha a memória, havia, também, na cabeça do Francisco Chiquinho, duas carambolas, uma fruta-do-conde, três goiabas e uma jaca. E ambos deitamos no gramado, e deitados permanecemos, a gargalhar, e a gargalhar, e a gargalhar, e a falar qualquer coisa, e a apontar para a Lua, que, não sabíamos porquê, não sendo noite, viajava pelos céus ensolarados. Com muito esforço, muito, muito esforço, assim que entendemos que era eu e ele que girávamos, e não a Terra, e que o Sol e a Lua estavam de namorico, e o namoro deles tinha de ser à luz do dia, e não à noite, porque os pais dela, dois corujas, a traziam à rédea curta, levantamo-nos, e fomos à churrasqueira, e enchemos o bucho, que, para a nossa surpresa, já havia se esvaziado, com um bom naco de carne de boi, ou de vaca, não sei, e algumas doses da loirinha gelada que entorpecia-nos os sentidos. Enquanto, sentados, estávamos a degustar o alimento dos deuses, o Francisco Chiquinho cantou outra canção de seu inesgotável repertório, uma cornucópia: "Non, rien de rien / Non, je ne regrette rien / Ni le bien qu'on m'a fait / Ni le mal. / Tout ça m'est bien égal / Non, rien de rien / Non, je ne regrette rien / C'est payé, balayé, oublié / Je me fous du passé." Francês! O Francisco Chiquinho também canta em francês. Oh! Edith Piaf! O meu amigo de todas as horas conhece a língua do Asterix, do Obelix, do Panoramix e do Ideiafix, e do Tin-Tin, os maiores heróis da França!

Estávamos quase sem forças meu amigo e eu. Havíamos exagerado nas músicas e na dança. Retirando energia sabe-se lá de onde, Francisco Chiquinho iria para o grand finale. Queria fechar o espetáculo com chave-de-ouro. Pôs-se em pé, empinou-se, assumiu postura marcial, pousou a asa sobre o coração, deixou a barriga para dentro e o peito para fora, a fisionomia impassível, o semblante patriótico, bateu continência, e, firme, e sério, e venerável, cantou: "Brasil, meu Brasil brasileiro / Meu mulato inzoneiro / Vou cantar-te nos meus versos." Com dificuldade, pus-me em pé, e copiei-lhe a postura. E segui-lhe a cantar. Ele emocionou-se com "Ô! Esse coqueiro que dá coco / Onde eu amarro a minha rede / Nas noites claras de luar / Brasil! Brasil!" O meu velho e amável amigo ama, confortavelmente deitado numa rede, sonhar, rememorar capítulos inesquecíveis de sua história, os dramáticos, os épicos, os cômicos, os trágicos. Sonhos revigorantes. Ao fim da canção, levou à boca um copo, e apreciou um gole de cerveja. E deitou-se na rede.

Cacarejar o Francisco Chiquinho só cacareja em português, e num português acaipirado. Ele é um caipira paulista. Mas cantar, canta que é uma beleza em português, em inglês, em italiano e em francês. É um poliglota. Ele canta, também, em japonês, russo, espanhol e alemão? Não sei. Ontem, nenhuma canção destes idiomas ele cantou.

Escondia-me Francisco Chiquinho o seu dom musical. É ele um cantor de admirável talento. Um gênio da música. E é ele meu amigo, amigo-do-peito, velho amigo.

Acordei, hoje cedo, assim que ouvi Francisco Chiquinho anunciar o nascer do dia, dia lindo, maravilhoso, o Sol no horizonte. Levantei-me do gramado, pus-me, apoiado nos braços, ligeiramente inclinado para trás, sentado, e olhei para o Francisco Chiquinho. Sorri, feliz, ao vê-lo animado, recuperada a sua vontade de viver, a cacarejar com todo o poder, que é muito, e maior, bem maior, do que eu imaginava até ontem, de seus pulmões, poderosos pulmões.

Ilustre Desconhecido
Enviado por Ilustre Desconhecido em 27/11/2022
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