Relacionamento.com (Parte dois)
Nota do autor: É recomendada a leitura da primeira parte a fim de compreender o texto a seguir...
Ela ocupava uma das mesas dispostas nas laterais de um trailer da orla que era famoso por ser uma espécie de local de encontro de casais. No local havia recortes emoldurados de jornais de diferentes décadas. Eles contavam em detalhes a história do lugar e apregoavam sua fama de haver sido palco de um sem número de encontros, muitos dos quais resultaram em matrimônios, alguns longevos inclusive.
Com exceção de apenas uma além da sua, todas as mesas ao redor estavam ocupadas por casais. A única ocupante solitária parecia tão aflita quanto ela e tentava falar ao telefone em meio ao burburinho. Os funcionários trajavam o uniforme característico do estabelecimento: um bermudão branco, uma blusa florida e um colar de flores no pescoço. Algo não muito criativo, simples até, mas que unido a decoração local, remetia aos tradicionais points havaianos e eram uma espécie de "marca registrada" do trailer. Os atendentes corriam freneticamente de um lado para o outro na tentativa de atender a todos os pedidos. Essa agilidade no atendimento era outra peculiaridade do local, ainda que por causa disso os funcionários chegassem exaustos ao final de cada expediente. Porém o salário e as comissões compensavam.
Ela ponderou por alguns instantes e então ligou para o número dele.
"Sua chamada está sendo encaminhada para a caixa de mensagens e estará sujeita a cobrança após o sinal.” Disse friamente a voz eletrônica do outro lado, sem se importar com a perplexidade que inundava cada centímetro de seu ser.
Ela olhou para a jovem solitária da outra mesa e a viu esbravejando ao telefone com seu interlocutor. Ela não apenas falava alto, mas gesticulava bastante também. Enquanto isso, um dos atendentes servia uma bebida de aparência curiosa ao casal da outra mesa. Talvez em outra ocasião isso teria despertado seu desejo de experimentá-la, mas não naquele momento.
Enquanto buscava aceitar o real significado da mensagem que tinha acabado de ouvir, um casal visivelmente apaixonado passou ao seu lado às pressas. Eles ocupariam o lugar numa mesa que havia sido liberada há poucos instantes. Sua memória olfativa de pronto reconheceu a fragrância assinada por Carolina Herrera quando o rapaz passou tão perto que quase esbarrou em seu braço. Era o perfume masculino de sua predileção, embora a lembrança do usuário, um ex-namorado cretino, não fosse das melhores. O casal sentou sorridente ao mesmo tempo em que a jovem desacompanhada desligou o telefone e levantou com cara de poucos amigos. Ela pagou a bebida na qual tinha dado não mais que um ou dois goles e então se misturou aos que transitavam pelo calçadão. Minutos depois, sumiu de sua vista completamente.
Após sua companheira de solidão partir e outro casal feliz ocupar a mesa, ela ligou mais uma vez para o número dele. Seu rosto, ela tinha certeza disso, estava desfigurado.
“Sua chamada está sendo encaminhada...” O telefone foi desligado antes que a voz concluísse a horrível sentença.
Ela então achou que talvez fosse hora de liberar a mesa para um casal de verdade. Insistir naquilo, que recendia obviedade, já afrontava sua inteligência, embora seu lado emocional ainda não estivesse conformado com a realidade. Há não muito tempo leu um livro que falava sobre inteligência emocional e descobriu que, a despeito de toda a sua destreza de raciocínio, tinha bastante dificuldade em lidar com questões de natureza afetiva. A prova disso é que naquele momento uma batalha era travada em sua mente. A razão apontava para o fato de que ele não apareceria, porém a emoção dizia que bastava apenas esperar um pouco mais e as coisas se resolveriam, que tudo daria certo.
Enquanto tentava lidar com isso, uma recordação nefasta veio-lhe à mente. Era nada menos que a lembrança de seu ex-marido, a quem no passado devotara seu amor e com quem fora casada durante quatro anos. Certo dia, cerca de duas semanas após seu quarto aniversário de matrimônio, ele chegou do trabalho e disse-lhe, com a frieza típica de um psicopata, que nunca a amara de verdade e que só havia casado para “dar uma satisfação social a sua família”. Disse ainda que na verdade gostava de homens e que agora finalmente tinha obtido a coragem necessária para assumir isso. Foi também nessa ocasião que descobriu o real motivo pelo qual não conseguia engravidar. Ele, sem que ela tivesse a menor ideia disso, havia sido vasectomizado um ano antes do casamento. E o médico, o mesmo que confirmou, olhando em seus olhos, a impossibilidade de seu marido engravidá-la por supostamente não produzir espermatozóides, foi na realidade o autor da cirurgia que a privou da maternidade. E como se isso não fora ruim o bastante, ela descobriria não muito depois, que o mesmo médico era também o amante por quem seu marido a estava trocando e com quem se relacionava há não menos que seus quatro anos de casamento.
Lembrar do inferno interior que sucedeu a descoberta dessas coisas era algo que lhe fazia tão mal no presente quanto fez na ocasião. Sua auto estima naquele tempo assemelhava-se a de uma boneca inflável desprovida de ar. Sentia-se um lixo, a mulher mais indesejada do planeta. Chorava dia e noite e não tinha forças para absolutamente nada. Perdeu o emprego, emagreceu doze quilos e, não fora o amor e cuidados de seus pais, unidos ao suporte emocional de uma excelente profissional da psiquê, provavelmente teria perdido a sanidade também. Na época, seu maior problema estava em não aceitar que aquilo era real. Enganava-se diariamente com a ideia de que seu marido estava apenas vivendo um surto e em breve se arrependeria e voltaria correndo para os seus braços.
A pessoa que conseguiu trazê-la de volta desse estado foi Laura, uma experiente psicóloga a quem passou a visitar duas vezes por semana durante prolongado período. Atualmente ela e Laura se veem apenas uma vez na semana. Mas ali, sentada numa das mesas daquele trailer, tendo novamente que lidar com um conflito que exige uma decisão lógica, ela se vê novamente às voltas com o mesmo sentimento que a levara a enganar-se naquele tempo.
“Ele está por chegar! Apenas se atrasou um pouco!” Dizia a emoção, a despeito de todas as evidências contrárias.
“Sabe muito bem que isso não é verdade, Lisa!” Berrava, no entanto, a razão em sua cabeça.
Ela olhou para a mesa onde há pouco esteve a jovem desacompanhada e viu um casal sorridente sentado lá. Era agora a única pessoa sozinha na multidão de mesas espalhadas. Então, numa decisão lógica, mas que no entanto demandou-lhe um esforço hercúleo, levantou-se, pagou sua água de coco e saiu dali. Estava perdida, não sabia o que fazer ou para onde ir. Mas, de maneira quase que instintiva, descalçou os pés e caminhou na areia até a beirada da praia...
(Fim da parte dois…)