O ASTRO DA MÚSICA.

Metrô de Nova York. Um mendigo olha o rapaz com um violão, na ala leste. As notas nervosas, a voz de quem era adolescente há pouco tempo. Um sucesso do Nirvana. As poucas moedas no chapéu, no chão. O homem tirou o gorro e alisou a barba branca. -"Que tá olhando, cara?!" O mendigo acenou. -"Não vou roubar suas moedas, filho." O homem se foi. O frio intenso. O vai e vem de pessoas. -"Outra caneca de chá, Steve?" Perguntou o dono da lanchonete. -"Não vou recusar, Tom. Posso pegar as caixas?" O mendigo apontou a pilha de caixas de papelão na calçada. -"Pode pegar, Colbby. Vou inaugurar o mezanino no sábado e chegaram as cervejas. Colocarei mesas na calçada. Espero que o toldo chegue a tempo." O mendigo sorriu. -"Seu negócio está crescendo, Tom. Isso é bom." O homem de avental sorriu. -"Desculpa, seu comércio eu quis dizer. Soou malicioso. Uma inauguração pede música ao vivo, um som maneiro." O comerciante deu uma gargalhada. -"Certamente mas não tenho dinheiro. Vou ver se meu sobrinho acerta o som com umas caixas. Ele é técnico de som mas vive sem tempo." Colbby coçou a cabeça. -"Não há nada igual a música ao vivo, Tom. Nada igual mesmo. É hipnotizante, mágico." -"Tem mais caixas lá dentro, se quiser." O mendigo entrou. -"Você tem um grande coração e merece ser abençoado, Tom." Alguns funcionários organizavam o local. -"Ainda está cheirando a tinta. Uau, você tem um palco, Tom!! Que massa!" A esposa de Tom distribuía panfletos da reinauguração da lanchonete. -"Me dê alguns panfletos. Posso distribuir pela cidade, se quiser." A esposa de Tom agradeceu e deu um calhamaço de panfletos a Colbby. -"Ando por tudo que é canto. Nada melhor que eu ajude a divulgar a lanchonete." Colbby se foi. O copo de café e o donuts eram sagrados. A lanchonete de Tom era seu porto seguro, por anos, onde tinha a certeza de ter ao menos um café no dia. Mais que isso, Tom era um dos poucos que o chamava pelo nome e não o agredia com insultos. Não desconfiava dele. Colbby estacionou o carrinho de papelão. Passou a mão na garganta. -"Bem que eu podia ajudar o Tom. Será que consigo?" Meneou a cabeça, negativamente. -"Desista, Colbby. Você é um fracassado, um Zé ninguém." Os carros buzinando. -"Sai da rua, imbecil." Colbby ficou paralisado, observando o trânsito caótico. Ele tirou as luvas surradas. Olhou seus dedos grossos e machucados. A vitrine de uma loja de artigos raros. O seu reflexo o assustou. -"C. S. Nashville, você topa ajudar o Tom? Ei, não olha assim, meu jovem. Tom me dá café, é um irmão. Não temos violão, o velho Jim tem um, arranhado mas toca . O que acha?" Ele conversava com o reflexo na vitrine. -"Até sábado, velho amigo. Cara, você era bom. Aguenta tocar durante uma hora?! Temos que fazer um baita esforço e não beber nada até sábado. Vai ser difícil." Colbby sorriu. A neve começou a cair quando ele chegou a casa de Jim, no Harlem. Um cortiço mau cheiroso. As mulheres gritando. Os jovens na quadra de basquete. A kitnet 399. A porta abriu. -"Colbby?! Não veio pedir dinheiro, einh?" Colbby sorriu e entrou. A esposa de Jim o mirou, com desprezo. -"Sara! Colbby ainda está vivo." Disse Jim. Sara não gostava de Colbby, achava que era uma companhia tóxica ao marido. -"Preciso de seu violão." Jim e Sara se olharam. -"Não está querendo voltar ao showbiss, está? Cara, você tinha que ter uma estrela na calçada da fama." Colbby apontou o violão. -"Será um show de uma hora. Preciso retribuir um amigo e vou me esforçar pra não decepcionar. Vou ensaiar e ficar sóbrio." Jim o abraçou. -"Colbby, seu idiota. Terá que ensaiar aqui, junto de mim. Quero ir ao show, tudo bem?" Colbby chorou. -"Está bem. Não quero importunar." Jim o tranquilizou. -"Vou ajudá-lo." Horas depois, a filha de Jim chegou da escola. A garota de dezoito anos fez careta ao ver Colbby no sofá. -"Desde quando viramos albergue?" Jim a repreendeu. -"Tenha modos, Jéssica. Esse é Colbby. Vou ajudar esse amigo numa missão." Colbby a encarou. -"Vou embora, Jim." O outro não deu ouvidos. -"Não vai. Primeiro um banho, roupas novas e uma visita ao salão do Bryan. Um corte, tintura no cabelo, será outra pessoa." Sara e Jéssica riram da cena. Jim e Colbby saíram. -"Quem é esse velho, o Elvis? Papai está louco, esse farrapo humano tem talento pra quê? Vai ser inscrito no The Voice da terceira idade?" Brincou Jéssica, arrancada gargalhadas da mãe. Jim e Colbby retornaram, horas depois. -"Uau. Esse é aquele mendigo?" Gritou a moça, impactada com a aparência nova de Colbby. O cabelo curto e preto nada lembrava o homem de aparência de oitenta anos. O rosto liso, apesar das rugas e marcas do tempo, dava um ar juvenil a Colbby. -"O dentista Ramón vai lhe dar uma dentadura, Colbby. Não dá pra cantar assim." Jéssica concordou com o pai. -"Uma bota cairia bem. Uma camisa xadrez, um jeans surrado. Será perfeito." Sara a beliscou. -"Agora quer ajudar o sujeitinho? Não entra na onda de seu pai." Sussurrou Sara. Colbby tomou sopa com a família de Jim e dormiu o resto da tarde. Jéssica se aproximou dele. -"Quem é a figura? Porquê o ajuda?" Jim ficou sério. -"Jonny Cash, Celine Dion e Bob Dylan, todos gravaram músicas do velho Colbby. Esse cara era um astro da música." Jéssica estava incrédula. -"Perai, perai. Está dizendo que esse mendigo era um pop star, tipo Elvis?!" Jim confirmou. -"Ele perdeu a voz por um tempo, não conseguia mais cantar. Veio o vazio e a depressão. Esse cara já deu Grammys a muita gente com suas composições. Nunca quis holofotes e fama pois isso destruiu seu casamento. C.S. Nashville era seu apelido nas turnês pelo país. A exaustão dos palcos e da estrada o levaram a dependência de álcool, fumo e drogas. O cara tornou-se violento, indisciplinado e intolerante. O casamento acabou. O dinheiro parou de entrar. Os contratos cessaram. Os familiares o internaram num manicômio, onde passou longos seis anos. Sofrendo, solitário e drogado, desenvolveu dupla personalidade. Saiu com ajuda de poucos amigos de Denver, sua terra natal. Ele nunca mais voltou aos estúdios nem aos palcos. Passou longas férias na prisão, três anos pra ser exato. Roubava pra sustentar os vícios. Eu o conheci na prisão. Saímos juntos e ficamos amigos. Ele me ensinou a tocar violão e piano. Saímos em turnê pela Califórnia, tocando em bares em troca de um prato de comida. A voz dele ainda era linda, mistura de Elvis com Sinatra. Ele adorava fazer shows nas prisões e eventos beneficentes. O otimismo de retomar a carreira se foi de vez, devido a uma doença nas cordas vocais. Colbby trabalhou duro numa empresa de segurança, captando recursos para uma cirurgia salvadora que nunca aconteceu. Colbby, ele escolheu esse nome quando veio pra Nova York. Decidiu viver nas ruas. A última vez que o vi cantar foi há oito anos." Jéssica estava hipnotizada. -"E ele quer voltar a cantar?" Jim concluiu. -"Quer ajudar o Tom. Quer se apresentar num espaço. Naquela lanchonete Sunset, onde comemoramos o aniversário de sua mãe, ano passado." Sara ouviu tudo da cozinha. Desconhecia toda a história de Colbby. Desconhecia que aquele homem tinha sido o melhor amigo de Jim. -"Tenho que ajudar o velho Colbby. C.S. Nashville não existe sem o Colbby sóbrio e confiante." Disse Jim, pegando as mãos da filha. No outro dia, Colbby fez uma visita ao dentista. As próteses incomodaram um pouco mas ele suportou. Jim e Colbby passavam horas exercitando os dedos das mãos. Eles se trancaram no quarto de Jéssica, enquanto a moça estava na escola. -"Meu Deus. Vou dar uma volta. Esses ensaios de violão tiram a paciência de qualquer um." Sara saiu, incomodada com os ensaios. Jim e Colbby escolheram as músicas do show. -"Quinze músicas, Colbby. Amanhã tentaremos tocar, sem parar como se fosse no show." -"Você e eu, como nos velhos tempos??* Jim sorriu. -"Posso ser seu apoio no show, se quiser? Fica a seu critério." Colbby aprovou. -"Poderá cantar alguns sucessos, se quiser. Eu adoraria." Jim o cumprimentou. -"Vamos dar uma volta, amigo. Amanhã ensaiaremos pra valer." N outro dia, Jim ligou para Tom. -"Meu amigo vão fazer o show pra você, Tom. Pode acreditar." Ele desligou. -"Será surpresa, Colbby. Tom custou a crer. Não falei seu nome, fique tranquilo." Jim preparou a sala. Ele arrumou um outro violão. Os microfones. Os banquinhos. Sara e Jéssica no sofá, a privilegiada platéia do ensaio. Jim estava nervoso. Colbby fez gargarejo no banheiro. Ele ainda lembrava dos exercícios pra afinar e esquentar a voz. -"Ainda tem o chapéu, Colorado?" Jim se arrepiou. Há tempos não era chamado por seu nome artístico. -"C.S. Nashville? É você?!" Eles se abraçaram. Jim encarou o outro. Não era Colbby que estava ali. Jim pegou uma cadeira e tirou uma caixa empoeirada de cima do guarda roupas. O chapéu do amigo estava lá, guardado com carinho. Jim o colocou na cabeça de Colbby. -"Vamos lá." Colbby caminhou até a sala. O violão a tiracolo. As duas mulheres a frente mas Colbby enxergava um multidão. A cartolina com a ordem das músicas, no chão a frente deles, como se estivessem no palco. -"O microfone está desligado, não queremos levar multa por barulho. Faz de conta que estão ligados." Disse Jim a Colbby. -" Boa noite, pessoal. Estamos aqui para homenagear o amigo Tom. Sucesso na casa e muito dinheiro no caixa. Sou Nashville, esse é Colorado. Espero que curtam o show." Jéssica cutucou a mãe. Nunca tinha ouvido o pai cantar na vida. Sara estava incrédula. Colbby tocou algumas notas, testando o violão. -"A primeira será Street of Roses, de minha autoria." Anunciou Colbby. O country melódico ecoou. A voz de Colbby titubeou mas se firmou, ganhando ânimo com Jim cantando junto o refrão. Sara se ajeitou no sofá. Jéssica abriu um sorriso enorme. -"Caraca, da hora. Pai." Três músicas. Colbby bebeu água. Jim cantou uma música sozinho. Sara estava encantada. Jéssica queria gritar. Colbby e Jim eram bons. Dez pessoas estavam do lado de fora, os vizinhos ouvindo aquela cantoria. Colbby pigarreou, entre uma música e outra mas aguentou até o final. Jim cantava bem mas Colbby era superior, uma voz agradável e marcante. Treze músicas. Jéssica aplaudiu e abraçou o pai. Colbby estava exausto mas feliz. Os vizinhos bateram na porta. Sara abriu e recebeu os elogios dos vizinhos. -"Estão ensaiando ainda. Que bom que gostaram." Jim e Colbby se cumprimentaram, felizes. Noutro dia, outro ensaio. Jim convidou a filha para um dueto, em três canções. Jéssica adorou a idéia e Sara ficou orgulhosa de ver a filha cantar pela primeira vez. -"Minha garganta está doendo. Vou dar tudo de mim pelo Tom." Disse Colbby, já saindo de seu personagem C.S. Nashville. No dia da inauguração, Jim ligou para Tom. -"Arrumou a caixa de s6e microfones? Daqui sete horas estaremos aí." Tom estava descrente, achando ser uma pegadinha. -"Um louco ligou aqui. Diz que vai cantar na inauguração!" Ele riu ao comentar com a esposa. A noite se aproximando. Jim, Colbby, Sara e Jéssica se espremeram no táxi. O carro em frente a lanchonete. Tom foi até a porta. -"Violões? É o homem que me ligou?" Jim se apresentou. -"Sim, estamos aqui. Sou Colorado. Minha esposa Sara e minha filha, Jéssica Esse é C.S. Nashville. Vamos tocar country, pode ser?" Colbby cumprimentou Tom. -"Vamos tocar muito, meu amigo." Tom encarou Colbby. -"O chapéu. O senhor me lembra alguém." Um garçom chamou Tom. Jim foi até o palco e testou as caixas de som. Sara trouxe os dois banquinhos que vieram no porta malas do táxi, junto dos violões. Colbby admirou a beleza do lugar, remodelado. Nunca tinha entrado alí. Tom andava de um lado a outro, preocupado com a inauguração. Sem esperar, Colbby afinou o violão e testou o microfone com um trecho de uma canção de Shania Twain. Jéssica se virou, admirada. Tom e os funcionários pararam, admirados. Os clientes chegando. A noite. -"Estamos aqui pelo Tom. Esse show é pra ele, em especial. Você tem um grande coração e merece ser abençoado., Tom" Ao ouvir as palavras, Tom reconheceu Colbby. -"Sem a barba, o casaco. É o Colbby?" Jim o segurou, impedindo o homem de ir ao palco. -"É o Colbby mas agora, naquele palco é o C.S. Nashville. Se o chamar de Colbby ele não responde. Muitos acham que ele morreu, pra outros está desaparecido. Ele está fazendo um esforço enorme para estar aqui. Por você, Tom." Jim e Jéssica subiram no palco. Tom foi abraçado pela esposa e pelos três filhos. -"Porquê está chorando, Tom?" Ele apontou para o palco. -"Não vai acreditar ou achar que é loucura mas aquele cantor é o Colbby. O mendigo que pega as caixas nos fundos e distribuiu os panfletos. Lembra do amigo do Willie Nelson, que desapareceu? É ele!" A casa ficou lotada. Após o show de duas horas, Jim encerrou. Colbby pegou o violão e desceu do palco. Aplausos efusivos, os celulares tirando fotos. Jéssica brilhou e cantou duas músicas a mais do combinado. Tom amou o show e convidou a família de Jim para sua mesa. -"O mínimo que posso fazer é oferecer-lhes um jantar. Pizza para todos, já que recusaram o cachê." Tom falou com Jim. -"Ele não sai do personagem? Está sério e compenetrado." Tom olhava para Colbby, curioso. -"Vai demorar, Tom. Colbby voltará." Tom fez questão de levá-los pra casa. Na manhã seguinte, Jim encontrou Colbby na calçada. -"Bom dia, Jim. A garganta dói." Jim o abraçou. -"Estava fingindo ou C.S.Nashville o dominou ontem?" Colbby sorriu. -"Um pouco dos dois, amigo. Tom é incrível, um anjo. Nashville está no passado e lá deverá ficar." Eles entraram. Sara foi a escola de Jéssica. Jim foi a farmácia pois Colbby precisava de pastilhas. -"Está na internet. Acharam o cantor desaparecido, C.S.Nashville. É o Colbby. As imagens e vídeos dele, cantando na lanchonete estão no noticiário." Jéssica estava eufórica. A equipe da CNN chegou a lanchonete de Tom. -"Onde está o Nashville?!" Tom despistou. -"Não sei. Ele apareceu e começou a cantar. Não sabia quem era." Jim não encontrou Colbby. -"Obrigado, Colorado. Abraço." Era o que dizia o bilhete na mesa da cozinha. O homem parou no metrô, em frente ao rapaz que tocava. -"Me empresta?" Apontou o violão. -"O violão? Não vai roubar." Colbby tomou o violão. -"Sou mendigo mas sou honesto, rapaz. Só uma música pra me despedir de Nova York." Ajeitou o microfone e começou a cantar. Uma multidão volta dele. A melodia envolvente. O rapaz admirado. As notas e moedas encheram o chapéu do rapaz, como nunca antes. A voz de Colbby tomou conta do metrô. Ele devolveu o violão ao rapaz e correu pra pegar o trem. Colocou o gorro e as luvas. Misturado a multidão, era mais um. E nunca mais viram C.S. Nashville. FIM

marcos dias macedo
Enviado por marcos dias macedo em 19/08/2022
Reeditado em 20/08/2022
Código do texto: T7585914
Classificação de conteúdo: seguro