APENAS UMA SEMANA PRA VER O MUNDO.

Andrew McCartty estacionou em frente ao Eye Magic Center, em Nova York. O calor assolando os Estados Unidos, como nunca antes nos últimos cinquenta anos. Ele saiu do carro com ar condicionado e ajeitou os óculos. -"Vamos lá, Meggy. Hoje não escaparei da faca." A esposa sorriu. Os filhos Laura e Ronny juntos. -"O doutor Frank Romano é ótimo. É seu antigo amigo de escola. Seus olhos estarão em boas mãos." A consulta às oito horas. A ficha na recepção. O casal de máscaras, na sala de espera. O médico chamou a esposa. -"Como está o Andrew?" A esposa foi direta. -"Um pouco receoso. A cirurgia é complicada mas confiamos na medicina e no senhor, doutor. " O médico sorriu e agradeceu. -"Fico feliz. Isso é ótimo de ouvir mas sinto uma ponta de mágoa nas suas palavras." A mulher se curvou. -"Há vinte anos estamos casados. Ele é um ótimo marido mas perdeu aquela alegria de início de namoro. Não sai mais, não vê os amigos, não curte caminhadas e esportes. Só vê o lado ruim das coisas, só assiste crimes e violência na tevê. Culpa a Deus pela maldade do mundo, que pra ele não tem salvação." O médico escutava atentamente. A mulher desfiou um rosário de lamentações sobre Andrew. -"Apenas uma semana pra ver o mundo." Ele disse. -"Não entendi, doutor." O médico pegou as mãos da mulher. -"Vai dar tudo certo na cirurgia. Seu esposo vai enxergar até melhor que antes mas vamos fazer uma experiência com ele, se aceitar. Na escola, o Andrew vivia pregando peças e trolando os colegas, agora será minha vez de enganar o velho Andrew, se você me ajudar." A mulher se interessou. -"Eu ajudo, certamente. Que deseja fazer?" O médico explicou. -"Às vezes penso no que faríamos se tivéssemos pouco tempo de vida? O que faríamos? Após a cirurgia, Andrew deverá ficar dois dias com os olhos tapados, com curativo. A brincadeira é o seguinte, direi a ele que só poderá tirar os tampões após uma semana da cirurgia. Depois disso, cegueira total se não seguir a medicação certinho. Mentirei que surgiu uma doença rara, que o deixará cego em poucos dias. Vamos ver como reagirá." A mulher deu uma gargalhada. -"Que maldade, doutor. Andrew sempre foi brincalhão, pregando peças nos outros. Será bem feito pra ele." O médico estendeu a mão. -"Trato feito. Será nosso segredo. Vamos ver a reação dele." Meggy ficou séria. -"Terei que ser boa atriz, doutor." Ela saiu do consultório. Andrew folheava uma revista. Meggy sorriu e pegou a mão do esposo. -"O que o médico disse?" A esposa mentiu. -"Banalidades. Perguntou de sua alimentação, se fazia esportes? Sua rotina será importante pra recuperação mas a cirurgia será simples." Andrew estava cético. -"Esses médicos mentem, eu sei." Meggy quis tranquilizar o esposo. -"Vai dar tudo certo. Devemos agradecer pois quantos não enxergam nada! Temos sorte pois além de escutar os pássaros cantando, podemos vê -los. Podemos tocar as coisas, ver e sentir." Andrew a encarou. -"Você nunca falou assim, estou lhe estranhando." A enfermeira o chamou. -"Vou lá, querida." Ele a beijou e acompanhou a enfermeira. Seria preparado para a cirurgia no centro oftalmológico. Medida de pressão arterial e outros exames. Tudo em ordem. O roupão, a touca, os remédios. A equipe médica na sala especialmente preparada. Os aparelhos. O doutor Frank veio e o abraçou. -"Olá, Andrew. Será demorado mas será para seu bem. Fique calmo. " Frank estava confiante. -"Que bom. Estou pronto." O médico deu algumas ordens a equipe. A anestesia no paciente. O homem deitado na maca. Aquela luz no rosto. Uma picadinha na pálpebra, uma dor pequena no olho. O cansaço de ficar horas deitado. -"Não durma, Andrew. Pense numa pescaria, no Oregon. Uma viagem ao Rio. Carnaval. Caipirinha. Sua esposa e os filhos. Netos." Uma hora de cirurgia. Tudo bem com o paciente. -"Terminou, amigo. Um sucesso." Disse o médico. Andrew ouviu a voz da esposa. -"Meggy está aqui. Vai ajudá-lo a se vestir! Já estará liberado pra ir. Ficará sete dias com esses curativos, certo? Nada de luz solar, procure repousar. Passei alguns remédios a Meggy! Boa recuperação, campeão! " O médico o abraçou. Andrew saiu andando, amparado pelos filhos. -"Não doeu nada. Estou ótimo!" O médico puxou Meggy num canto. -"A cirurgia foi um sucesso! Mexi o olho esquerdo dele, só pra fingir que o operava. Melhor que fique com os dois olhos tampados por sete dias. Ele retornará pra tirar o curativo e lhe darei a triste notícia. Vamos aguardar, Meggy! " Eles se cumprimentaram e Meggy foi até o carro. Andrew no banco detrás, paparicado pela filha. Há tempos Meggy não via aquela cena, da filha segurando as mãos do pai. Só por aquele momento a encenação do doutor Frank já estava valendo a pena. Por sete dias, Andrew ficou com a visão obstruída. O rádio era um amigo fiel que há tempos deixara de lado. -"Meggy, há tempos não ouvia essas músicas antigas. Essas rádios da cidade!" Meggy estava curiosa. -"Quando nos falta um sentido, desenvolvemos os outros! Sem a visão, está ouvindo melhor, percebendo sons que antes não dava valor." Andrew se alimentava com Meggy o ajudando e achando graça da situação. Andrew tropeçava nós móveis e feriu a canela da perna algumas vezes. Trocava os curativos após os banhos, quando abria os olhos com certo receio. -"Minha vista está ótima, quando abro os olhos um pouco, Meggy. Creio que esse tratamento vai dar certo." A esposa se segurando pra não rir. O esposo brincava com os sabores dos alimentos. Era uma experiência interessante. . Os três netos o visitaram e se divertiam fazendo brincadeiras com o avô. Meggy comprou óleos especiais e massageou Andrew, após o banho. O esposo dormiu, relaxado. -"Há tempos não recebia uma massagem, tanto carinho. Obrigado, Meggy. Não seria nada sem você." A esposa o abraçou. Andrew não falava daquele jeito há tempos. Os filhos organizaram um churrasco, no dia dele tirar os curativos. -"Se arranharem minha churrasqueira, eu tiro vocês do testamento!" Brincou com Laura e Ronny. A família voltou ao consultório do doutor Frank. O médico estava sério. Ele cumprimentou a família. Andrew teve os curativos retirados. Meggy o abraçou. -"Estou bem. Enxergando melhor até!" O médico chamou a família ao seu consultório. As fotos de outros pacientes na parede mas Andrew deveria pensar que eram deles. -"Senhor Andrew, a cirurgia foi excelente porém detectamos, nos exames, uma anomalia. Uma doença rara que está avançando e poderá atingir o outro olho. . Em uma semana, poderá atingir o outro olho e isso será horrível. Após uma semana, poderá perder a visão totalmente e aí ficará cego, Andrew. Eu sinto muito!" Andrew suou frio e apertou as mãos da esposa. O médico mordeu os lábios e coçou a cabeça. Ele deu um pequeno murro na mesa. -"Olha, essa doença é rara. Dez casos no mundo. Pode ser reversível com remédios, que tenho aqui, felizmente. Se tomar certinho a medicação, poderá se curar mas não é comprovado, não é certeza pois são remédios novos, em testes ainda." Andrew estava suando. -"E se a medicação não surtir efeito? Posso ficar cego?" Frank olhou para Meggy. -"Infelizmente sim. Terá uma semana apenas de visão plena, Andrew. Terá que ser forte, entregar nas mãos de Deus." Meggy teve pena ao ver o marido chorar. -"Bem, é a vida! " A voz embargada. -"Ao menos tenho os outros sentidos. Tenho Meggy, os filhos, os netos, a cachorra, a churrasqueira. Ainda há motivos pra agradecer, não? " O médico o abraçou. -"Vou acompanhar seu tratamento, Andrew. Os milagres existem! Essa semana sem ver vai descansar sua visão. Vai sentir sua visão melhor." O médico abriu uma gaveta e tirou dez caixas de comprimidos. -"Dois comprimidos por dia, por uma semana. São muito fortes." Meggy pegou as caixas. O médico se despediu deles. -"Obrigado, doutor. Estou confiante na cura." Meggy ficou para trás. -"São remédios de verdade? " O médico riu. -"São balinhas, nada mais. Sem efeito nenhum! " Andrew estava bem, no primeiro dia sem os tampões. -"Minha vista está ótima, querida. Que acha de um piquenique no Central Park? Só nós dois? " Meggy concordou. Eles caminharam pelo bosque e jardins. A cesta com lanches e frutas. Andrew olhava os esquilos, as crianças brincando, os casais de namorados. -"Estranho que daqui há uma semana posso não ver mais isso! " A esposa engoliu em seco. -"Procure não pensar nisso! Vamos orar antes de comer? " Andrew fechou os olhos e orou, no seu íntimo. Meggy viu uma lágrima escorrer do rosto de Andrew. Ele segurou uma maçã. olhava pra fruta com admiração. -"Deus é perfeito, Meggy. Quanto prazer num toque, num sabor, nessas formas perfeitas. Quanta bondade recebemos e não valorizamos. Quanta gente nos acompanhou até aqui, amigos de escola e trabalho. A família. Nossos pais. Meggy sorriu. -"Você está enxergando com olhos da alma, com 9 coração, Andrew. Vendo o que é essencial e importante, as sutilezas. Descreva quatro amigos seus!" Andrew puxou pela memória. -"Nunca pensei nisso. Meu pai era meu melhor amigo. Era alto e forte, olhos profundos. Mais calejadas. Ramires, o mexicano, foi um ótimo amigo. Me ajudou no escritório. Tinha um bigode e sorria muito. Brennand, o de Chicago. Um líder do time de beisebol. Era moreno, cabelo liso. Raul, era baixo. Me arrumou emprego na loja de tintas. A gente bebia muito e ficávamos até tarde jogando xadrez. Minha melhor amiga é você, Meggy. Tem cabelos curtos, agora. Covinha no queixo e ar de menina que amo." Meggy o beijou. -"Você disse as características de cinco e não de quatro pessoas! Valeu! " No outro dia, Andrew visitou a casa dos filhos. Ficou horas brincando e observando os netos. Quis até ver os cadernos de escola das crianças. Brincou com os cães de Laura, dois vira latas que ela recolheu na rua. No outro dia, Andrew acordou cedo e foi a padaria. Voltou uma hora depois, conversando com os vizinhos. Há tempos não fazia isso e Meggy teve que requentar o café. Procurou coisas na casa pra consertar. Procurou Bernny, um antigo colega de escola. -"Bernny?! Sou eu, Andrew! Vamos reunir a turma de 86? No Central Park, dia 11, as treze horas. Cada um levará sua cerveja favorita, que acha? " Andrew estava ansioso pra reencontrar os amigos de escola. Outro dia e Andrew quis pintar a casa. Meggy fez guerra de tinta e tirou fotos do marido todo borrado de azul. -"Amanhã vou a academia com você, Meggy. Estou enferrujado e preciso fazer exercícios!" Meggy estava admirada com a decisão dele. Outra manhã. Andrew e Meggy subiram o monte, pra ver o nascer do sol. Uma visita ao museu. Comeram um hot dog na rua da cidade, como nos tempos de vacas magras. -"Vamos a Broddway, Meggy. Quero ver uma peça de teatro!" O casal na Quinta Avenida. Fizeram planos de conhecer o Brasil e o Egito. Outro dia. O casal foi aos bairros pobres, o Bronx, Harlem. Chinatown. As pessoas de diferentes etnias e semblantes. Bairros de estrangeiros. As crianças brincando. Um vozerio no mercado. As bancas de comidas. O trânsito. Cenas felizes, tristes. Uma semana se passou. Andrew e Meggy na cama, conversando como há tempos não faziam. Se amando e se curtindo como há tempos não faziam. -"Foi ótimo convidar alguns vizinhos para almoçar conosco! Foi ótimo voltar a frequentar a igreja. A oração do pastor Hendrix para a sua a recuperação foi uma surpresa. Gostei muito. Deveríamos fazer mais isso!" Disse Meggy. -"Uma semana! Amanhã iremos ao doutor Frank. Ele vai reexaminar os meus olhos!" Meggy o abraçou. -"Essa semana tem sido maravilhosa. Até me esqueci disso, amor! " Andrew colocou uma música no celular. Quase meia noite. -"O que as pessoas fariam se soubessem que estavam prestes a perder a visão, em poucos dias? Usariam a visão de modo diferente?" Meggy sorriu. -"Acho que fariam o que você fez, Andrew. Veriam um mundo mais belo e fascinante, querendo saborear cada momento. Usando melhor os outros sentidos. Usando melhor a visão do coração, do interior. Captando sons, tateando, percebendo a linda orquestra da vida, como se o amanhã trouxesse outros perfumes, gostos e aromas. Um mundo belo, sem a visão exterior mas rico interiormente!" Andrew concordou com Meggy. Toda a família preocupada com Andrew, no dia do retorno ao oftalmologista. Ele estava confiante mas se preocupou quando o médico quis falar primeiramente com Meggy. -"Aconteceu tudo isso? Nessa semana? Que maravilhoso!" Disse o médico após Meggy revelar a semana que passou com Andrew. -"Ele acreditou mesmo que poderia ficar cego e nunca mais ver. Está transformado." O médico aconselhou a não falar nada da trolagem a Andrew. -"Melhor não revelar nada. Sempre é tempo de mudança pra melhor, corrigir a rota. Como disse, ele está enxergando a vida com outro olhar. Isso é uma bênção!" Doutor Frank chamou e examinou Andrew! Um aparelho atrás do outro! Um colírio aqui, uma avaliação alí. Um teatro bem ensaiado. -"Parabéns, Andrew! Parece que o olho está bem. Um milagre eu diria! " Se sentir alguma coisa diferente, me ligue." Eles se cumprimentaram. Andrew estava feliz. FIM

marcos dias macedo
Enviado por marcos dias macedo em 20/07/2022
Reeditado em 24/07/2022
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