DOIS HOMENS, UMA MULHER...
DOIS HOMENS, UMA MULHER E…
PARTE I
Habitava a jovem Laurentina num humilde casebre na encosta do monte de Stª Tecla, juntamente com os pais, quatro irmãos mais novos e avó paterna. As dificuldades desta família em fazer face às necessidades do dia-a-dia eram permanentes e Laurentina iniciou-se no trabalho agrícola como jornaleira logo que deixou a escola básica, da qual não guarda boas recordações, por, dizia ela, ter cabeça de alho chocho. Na verdade Laurentina demorou oito anos a concluir o básico de quatro, que não pode encontrar desculpas na sua cabeça de alho chocho, como dizia ela, mas no desinteresse pessoal e na analfabetização de pais e avós, que viam na escolaridade um luxo a que os pobres não deveriam ter acesso. Aliás, os pais diziam que a melhor caneta era uma enxada para trabalhar e o livro uma máquina de costura para deitar chapas nos joelhos ou cuadas das calças dos irmãos, que nas folias, as jovens crianças rasgavam.
Em razão destes critérios, Laurentina haveria de herdar dos pais a dita “caneta” que rasgaria a terra, ora na sementeira de batatas, plantio de couves ou na sacha do milho ou ainda no desbaste de silvas e corte de mato.
Ao Sábado aprendia costura na Glórinha e deste aprendizado, ao fim de um mês já sabia subir bainhas, deitar joelheiras ou cuadas. O Sábado era o dia que Laurentina mais gostava porque a ligeireza do trabalho permitia uma folga aos dias árduos que decorriam de segunda a sexta-feira, quantas vezes ao sol escaldante que inunda o céu de Maio a Setembro, ou aos frios de Janeiro e Fevereiro em que as mãos ficavam insensíveis e gretadas por frieiras.
O Domingo de manhã era ocupado com a ida á missa e auxiliar a mãe nas lides domésticas, ora cozinhando ora limpando do pó, os parcos haveres. Na parte de tarde saía com amigos ou namoriscava consoante as ocasiões. Namorados ou pretendentes foi coisa de que ela não se podia queixar. Não era uma moça fisicamente distinta mas tinha alguns encantos que os rapazes lhe descobriam, particularmente a vivacidade de gestos e dos olhos enquadrados em sobrancelhas espessas que faziam supor, na óptica dos rapazes ser uma moça “quente”. Em boa verdade, estes pormenores levá-la-iam a nunca estar carente de namorados, até que um dia houve um deles que assentou arraiais no seu coração. Tratava-se do Benjamim Carapuça, que recebeu este alcunha por no Inverno usar uma espécie de barrete de lã de forma cónica, nas manhãs geladas que protegiam a cabeça e orelhas, na sua deslocação de bicicleta para o trabalho.
Este namoro iria perdurar tendo na sombra o Chico Pardelho, um íntimo de Benjamim, que se corroía de inveja, mais que de ciúme, quando os via passar de mão dada aos Sábados, depois da costura, ao Domingo de manhã depois da missa ou nas partes de tarde.
Quando acidentalmente se cruzavam, Chico Pardelho fazia questão de os interpelar com o objectivo de firmar o seu olhar, na Laurentina, a coberto de cumprimentar o amigo. Benjamim notava que o Pardelho focalizava os olhos na namorada e curiosamente sentia gozo nisso porque lhe enchia o peito de vaidade por ter uma namorada apetecida, pela grande maioria dos moços da sua idade, mas só ele o eleito.
A trupe de rapazes fazia conversa amiudadas vezes sobre Laurentina e cada qual opinava a seu respeito, sobre o que entendia serem as suas mais virtuosas qualidades. As opiniões mais comuns iam de encontro ao que lhes parecia ser o seu potencial sexual e nestas opinações sobressaía o Dário Fominha, assim alcunhado por ser muito alto e magro, que mais parecia ser um pinheiro sombrio, o qual dizia: eu a essa, se a caçar, até vai revirar os olhos em branco… e aquelas mamas vão andar num fanico…
O ciúme, melhor dizendo a inveja de alguns, levou-os a alcunhá-la de Laurentina das Cuadas, pelo seu trabalho de costura em que a Glórinha dizia: para as cuadas tenho a Laurentina.
Num tempo de dificuldades, fazer roupa nova só mesmo na Páscoa, porque a visita pascal quase a isso obrigava. Glórinha, já mestra há mais de trinta anos, era uma costureira de qualidade, mas as acentuadas dificuldades financeiras do povo quase só lhe garantiam trabalho a fazer aventais, batas, cuecas ou ceroulas.
Benjamim trabalhava de aprendiz de carpinteiro com o Joaquim da Serraria, a aplicar soalhos e telhados. No Inverno faziam soalhos e no Verão telhados. Havia muito trabalho, chegando a fazê-lo dez a doze horas por dia, muitas vezes mal comidos ou alimentados com umas latas de sardinha conserva, pão, azeitonas e vinho, o insuficiente para um jovem de dezassete anos, mas a economia a que estava obrigado com vista ao casamento que se adivinhava para breve, não o deixava ir muito mais além. Na verdade, Laurentina deixou de ter os dois últimos períodos menstruais e o mais certo é que estivesse grávida, para tanto iriam passar pela farmácia para fazerem o teste, só que ainda não encontraram a melhor ocasião. Ambos andavam apreensivos porque a suposta gravidez ainda não estaria nos seus horizontes, contudo já se andavam a mentalizar para essa eventualidade e até já falavam no nome que poderiam dar à criança. O teste de gravidez iria ser feito na semana que vem porque Benjamim também queria estar presente e só nessa altura iria ter vaga porque o patrão não ia trabalhar e dava-lhe folga.
Feito o teste, confirma-se a gravidez. Olharam-se, cingiram os lábios e na mímica levitaram palavras e frases não ditas, mas percepcionadas. Já fora da farmácia deram um beijo demorado de satisfação por se acharem pais de um feto produto de um verdadeiro amor. Neste particular, Benjamim estava embriagado de satisfação, ao passo que Laurentina, mais receosa, ainda iria ter que se confrontar com os pais quando lhes desse a informação da gravidez, para a qual ainda não saberia como fazer, por especial receio à mãe. Benjamim dizia-lhe que não receasse e que os pais quando soubessem já estariam preparados para receber a notícia porque ele se havia lembrado de Glórinha, a qual aceitou fazer intermediação. Aliás, dizia Glórinha:
– Ides ver, que não irá haver alarido.
Glórinha sabia muito da vida de Leopoldina, a mãe da jovem, e sabia-o melhor que ninguém. Eram amigas desde tenra idade, frequentaram a catequese, eram vizinhas e tinham parentesco que entroncava nos bisavôs paternos. Eram primas em segundo grau e confidenciavam entre elas muitas coisas que Glórinha ainda não esqueceu e a que irá recorrer, para dar a notícia da gravidez da filha.
Num Domingo de manhã e depois da missa, Glórinha abordou Leopoldina e puxou conversa sobre os tempos da juventude, dos namorados e de diversas outras futilidades e fizeram o seguinte diálogo:
- Como os anos passaram depressa, Leopoldina…ainda há pouco éramos da idade da tua Laurentina e agora, qualquer dia já serás avó…
- Não… Ainda é cedo…Laurentina só tem dezasseis anos e tem tempo de limpar meninos.
- Se não limpar ela, poderás limpar tu…
- Ela é muito nova para cometer loucuras, Glórinha…
- Isso é verdade. Diz-me: já te esqueceste de ti, do teu passado? Tu da idade dela, já estavas grávida do teu Eusébio…
- Isso é verdade. Outros tempos. Se fosse hoje, não aconteceria.
- Outros tempos? Não há outros tempos. Os tempos são sempre os mesmos. Quando se ama com paixão, o risco é sempre grande. Eu, não tive a sorte de me ter aparecido um namorado. A minha deficiência marcou o meu destino…senão, sei lá…
- Assim também estás bem. Não aturas homem nem filhos…
- Estás enganada. Tenho as minhas mágoas e talvez mais do que tu e muito mais do que aquilo que tu pensas. Adorava ter tido filhos e se uma filha me aparecesse grávida, saberia compreendê-la. Não a rejeitaria nem a hostilizaria, pelo contrário, saberia perceber que no ventre dela estaria uma vida também do meu sangue.
Com esta dissertação, Glórinha havia talhado o caminho para lhe dizer que a filha estava grávida. Continuaram o diálogo do seguinte modo:
- E digo-te mais Leopoldina, se a tua filha por acaso lhe acontecesse ter uma gravidez prematura, eu fazia questão de ser a madrinha do bebé e dar-lhe-ia o nome da avó ou do avô, consoante o que nascesse.
- Está lá calada mulher. Deixa-a namorar e engravidar tem tempo, quando casar.
- Pois…só que a tua filha vai-te dar um neto, por isso já sabes, madrinha não precisas de procurar…Laurentina está grávida de dois meses.
Leopoldina, que nunca teria equacionado para a filha este cenário, sentiu-se chocada. Glórinha percebeu e disse-lhe:
- Que mal tem? A criança tem pai. O Benjamim é bom moço e trabalhador. Agora, lembra-te também que quando casaste, já estavas grávida. Quem sai aos seus…Espero que saibas perceber e que não faças à tua Laurentina o que a tua mãe te fez a ti, ou será que gostaste que ela te tivesse posto fora de casa? A tua filha não cometeu nenhum crime…
Perante a força destas palavras convincentes, Leopoldina haveria de reflectir e aceitar o neto vindouro e iria também preparar o marido para que aceitasse este novo facto na vida daquela casa.
Deixou passar alguns dias e só depois haveria de dizer ao marido, lembrando-lhe antes o caso deles, em que os dois aproveitando a ausência dos pais dela e usando a cama deles e não a dela, engravidou. Sei lá se a nossa filha também já fez o mesmo, sem nós sabermos, dizia Leopoldina.
O pai de Laurentina nunca foi obstáculo para ela, porque era um homem compreensivo. Da mãe, vinha-lhe mais receio, mas Glórinha soube prepará-la e disso iria ficar grata para sempre.
Quando Eusébio soube, encolheu os ombros e disse: Não posso fazer nada, não vou matá-la por isso…deixa lá, a criança tem pai e tem-nos a nós de avós. Agora, resta-nos ajudá-los…
Assim foi. Um dia acertaram calendário para casamento, que se queria fosse breve para que não vá de barriga grande, dizia Eusébio e acrescentava: o resto ficará por nossa conta. Somos pobres, mas há sempre lugar para mais um até que se arranje casa própria ou alugada.
Bom, o casamento apressou-se e um mês depois já eram marido e mulher e todo o trauma se havia esgotado a partir desse dia.
Ao fim de pouco mais de cinco meses, já havia não um, mas dois bebés. Foi a primeira vez que nasceram gémeos naquela terra. Nos comentários que se faziam, os moços novos diziam: ela tinha pinta de “quente” e pelos vistos não nos enganamos. Ou então as moças da idade dela também comentavam, dizendo: O Benjamim devia estar com um tesão!!! E riam-se.
Aparte estes comentários brejeiros, as mulheres davam os parabéns ao jovem casal e até se ofereciam para ajudar se tivessem dificuldades, que eles agradeciam com palavras simples.
A vida com os dois rebentos decorre com felicidade extrema. O Joaquim da Serraria teve uma conversa com Benjamim e transmitiu-lhe solidariedade, aumentando-lhe o salário em vinte por cento, que apanhado de surpresa, levou-o a sentir ainda maior apreço pelo patrão, dizendo-lhe que contasse com ele em tudo que lhe estivesse ao alcance. Na verdade, Benjamim personificava qualidades superiores de trabalho e morais a justificar a consideração do patrão.
Os bebés crescem com bom desenvolvimento geral, exclusivamente alimentados a leite materno e Glórinha anda excitada porque quer assumir a palavra dada meses antes, em que se ofereceu para madrinha. Os bebés, menino e menina, já tinham nome escolhido e tacitamente aceite. Faltava escolher padrinho e Benjamim fez questão de ser ele a escolhê-lo, tendo convidado o patrão, que aceitou, o qual sugeriu que o seu nome constasse e desse modo o menino viria a chamar-se Eusébio Joaquim e a menina, pelo empenhamento e amizade de Glórinha para com os jovens e por sugestão destes viria a chamar-se Leopoldina da Glória.
Realizado o baptizado, que foi em grande parte custeado pelos padrinhos, o jovem casal vive momentos de extrema felicidade.
Três meses depois, Laurentina acha-se novamente grávida. Este novo facto levará o casal a reflectir sobre o futuro e as condições de habitabilidade em que vivem e que devido à sua exiguidade, agora ainda maior com a presença de novos inquilinos, levá-los-á a procurar casa alugada para que possam todos beneficiar com a separação.
Os pais de Benjamim nunca se haviam intrometido na vida dos jovens, mas a partir da hipótese de irem viver para nova casa, quiseram dar a sua opinião. A mãe, Adelaide Saia Branca e o pai, Cristino Padeiro, passaram a ter uma atitude de proximidade. Fizeram um apelo à generosidade e começaram a ajudá-los na medida das suas possibilidades com alguns valores pecuniários.
Os pais de Laurentina mal tinham para eles e quando viram a filha casar, sentiram-se aliviados de um encargo, embora esta colaborasse, ainda que de modo pouco significativo.
Laurentina deixou de trabalhar de jornaleira para tratar dos bebés e apenas trabalhava ao Sábado de costura na Glórinha, que a convidou para lá trabalhar dia sim, dia não. Laurentina ficou de dar resposta depois de conversar com o marido. Aceite o alargamento dos dias de trabalho, Laurentina pediu a Glórinha que a ensinasse a fazer aventais, batas, cuecas e ceroulas e frisou que também gostaria de aprender a fazer vestidos.
Glórinha gozava de pouca saúde e viu no interesse dela uma oportunidade a não enjeitar e passou aos poucos a ensinar-lhe tudo o que havia aprendido da sua grande mestra, a Beatrizinha Sete Saias. Seis meses depois já Laurentina fazia um vestido, sem a ajuda da Glórinha. Dizia ela que o que mais gostava de fazer eram as marcações, corte e depois a prova e do que gostava menos era pregar fechos, chulear e casear. Na verdade mostrava gosto pela profissão de costureira e ansiava pela oportunidade de vir a ter uma máquina de costura própria e que na sua cabeça programava para depois do nascimento do terceiro filho.
Benjamim sabia da pretensão da mulher e começou a fazer umas economias, ocultando-se de Laurentina para em tempo oportuno lhe fazer a surpresa.
Entretanto, mudaram-se da casa dos pais para uma alugada. Nela havia morado um homem solteiro e que desde a sua morte, dois anos antes, não mais havia sido ocupada. No primeiro ano ficou acordado não pagarem aluguer e em contrapartida, Benjamim prometeu fazer algumas reparações para minorar a degradação em que se encontrava a casa. A nova habitação ficava afastada do centro da aldeia, a montante de umas poças que alimentavam regas e moinhos nos terrenos jusantes. Era nesse bucólico lugarejo, onde a vizinhança se fazia sentir através dos gorjeios e cânticos e onde nem a luz eléctrica havia chegado e a iluminação de fazia à luz de velas ou de um lampião, que viviam felizes e mais felizes ficaram com o nascimento de novo herdeiro. Em dois anos, três filhinhos nos braços acarretaram algumas dificuldades que se iam superando em esforço e através da generosidade de Cristino Padeiro e esposa. O contributo dos pais de Laurentina era de afectividade extrema e a mais não podiam. A prole ainda estava longe de estar criada.
Ao jovem casal, do essencial nunca nada lhes faltou até que um dia Benjamim se achou doente, tendo feito tratamento a cálculos renais durante duas semanas, tendo faltado ao trabalho. As dificuldades começaram a surgir. O rendimento mensal decaiu e Cristino Padeiro que trabalhava na padaria do Teófilo Pão Quente, levava-lhes leite, iogurtes, pão, queijo e fiambre e deste modo minorava-lhes as necessidades e dificuldades imprevistas.
Após estas duas semanas, Benjamim inicia convalescença e regista significativas melhorias e na semana seguinte regressaria ao trabalho, feliz como dantes. Um raio de sol voltaria a iluminar o acabrunhado lar, refrigerado pela falta de saúde e de rendimentos.
Joaquim da Serraria foi visitá-lo e saudou-o efusivamente, dando-lhe força anímica, que Benjamim agradeceu.
- Que é isso Benjamim… eu da tua idade tive uma anemia e ainda aqui ando… vais ver que é passageiro. És jovem e na tua idade as perdas de saúde são facilmente recuperáveis. Se fosse na minha idade, era de estar apreensivo…
- Fiquei preocupado Sr. Joaquim. Nunca antes havia tido qualquer sintoma de doença…lembro-lhe que tenho três filhotes e a minha dor estava mais neles que em mim…
- Compreendo-te e ficam-te bem esses sentimentos. De mim recebes um elogio à tua conduta…
- Obrigado Sr. Joaquim. Eu levo em consideração a sua preocupação com a minha saúde. Muito obrigado, muito obrigado.
Findo este pequeno diálogo em que Joaquim centrou o discurso numa conversa animadora, lembrou-lhe que pela frente os espera a tarefa de soalhar o Palacete dos Alves Reis, o qual deverá dar trabalho abrigado do frio que se avizinha, para mais de quatro meses e que se perspectiva um outro na recuperação dos telhados da Casa da Lamela, dos Vieira de Sousa, um solar do sec. XVIII, que se encontra degradado por abandono dos anteriores proprietários, que há falta de recursos financeiros dispendidos em gastos supérfluos com carros, mulherio e tainadas, acabariam por ter de o vender a um industrial de Guimarães, para saldarem dívidas acumuladas na devassidão de vários anos. Haja saúde e teremos trabalho assegurado para vários meses, dizia Joaquim da Serraria.
Posto que a convalescença tivesse decorrido melhor que o esperado, Benjamim avisou o patrão de que no início da semana que se aproximava, iria trabalhar em pleno.
A felicidade regressou ao lar e a retoma da saúde foi um pretexto para Benjamim comprar um rádio, um gira-discos e, pasme-se: um canário cor de salmão. O rádio ou gira-discos quando ligados tocavam bem alto e testemunhavam o seu estado de espírito e do lar. O canário acompanhava-o para todo o lado da casa onde estivesse e até o levava para o quarto, porque dizia, gostava de acordar ao seu cântico.
A próxima aquisição a fazer, além da máquina de costura será uma televisão. Estas duas compras irá mantê-las em segredo até à sua consumação, porque quer fazer a surpresa à mulher, a primeira no aniversário de Laurentina que ocorrerá daí a dois meses e a TV estará programada para presente de Natal. Antes ainda vai ter de meter a luz eléctrica. O rádio e o gira-discos trabalham a pilhas, mas fica-lhes caro por durarem muito pouco tempo. Assim, dirigiu-se à empresa distribuidora de energia para, sem demora, ter a certeza de que a energia chegará ainda antes do Natal.
Laurentina e Benjamim viviam, ela ainda mais que ele, na plenitude da realização pessoal e transparecia-o em tudo o que fazia, sobretudo quando junto dos bebés os olhava, acariciava ou lhes dava de mamar. Nada era feito sem ter como pano de fundo a imagem de Benjamim, que ela amava apaixonadamente e que por via disso a tornara deprimida e sem forças naquelas duas semanas angustiantes, que no seu subconsciente a levava a desenhar cenários sombrios e arrepiantes para o futuro e especialmente dos filhotes, para quem a doença do pai ainda não existia, porque Benjamim se desdobrava em afectos, como se fossem os últimos. Laurentina era vulnerável. O seu psíquico frágil, que ela reconhecia, não suportava reveses a ponto de dizer a si mesma: que será de mim, se por azar Benjamim um dia me faltar ou se for cometido de doença grave que o impossibilite de ser homem em toda a sua plenitude…? Laurentina será sempre uma mulher ao mesmo tempo feliz e angustiada por um futuro, que teme. Ela procura não transparecer o seu estado de espírito para o marido, o qual vai continuar a dar o seu melhor em prol do agregado. No contexto actual e pleno de saúde, Benjamim só já tem olhos para o aniversário da mulher e para a máquina de costura. Esta, ele já a viu e depois de uma breve conversa com o vendedor, acertaram a compra, o modo de pagamento e a entrega para o dia de aniversário de Laurentina, logo pela manhã e depois de Benjamim ter saído para o trabalho.
Assim foi. O Sebastião da Electro Boa Luz, cerca das 10 horas da manhã do dia do 19º aniversário de Laurentina, surpreendeu-a com a desejada máquina, que ela não suporia ser tão cedo. O espanto foi tal, que questionou Sebastião se não haveria engano na entrega, ao que este respondeu estar certo e seguro do que estava a fazer. “Conformada”, Laurentina esboçou um sorriso banhado em lágrimas de felicidade que não susteve e em voz murmurante balbuciou o nome de Benjamim.
À noite e no horário habitual de regresso, Laurentina surpreendeu o marido e fez-lhe uma omeleta com chouriço e fiambre, por não haver posses para mais, mas cujo significado era igual ao de apresentação de lagosta. Foi um gesto corroborado com beijos, que Benjamim haveria de registar e que num e noutro testemunham uma paixão ardente que não vê fim à vista.
O lar vai-se enchendo aos poucos de sinais (presentes) de amor, ainda que singelos, são de enorme representatividade. Benjamim tem sensibilidade e sabe tirar partido disso. O rádio, o gira-discos, a máquina de costura e até o canarinho, testemunham o regresso da felicidade, pois o amor, esse, nunca conheceu tibiezas.
Laurentina quis experimentar a máquina nesse mesmo dia e talhou num tecido de chita umas cuecas para Benjamim estrear. Na simplicidade destas atitudes, a jovem esposa deu sinais claros de gratidão e quis dar à surpresa das cuecas, contornos afectivos, tendo-as escondido debaixo da almofada de dormir, do marido. Á noite e já na cama, Laurentina presenteou-o com chuvada de beijos a que o marido, mais para receber que dar, retribuiria deficitariamente até ao momento em que ela metendo a mão por baixo da travesseira, de lá retirou as cuecas. Esta cena catapultou a fogosidade de Benjamim para os limites e o amor aconteceu tão ardorosamente que Laurentina sentiu múltiplos orgasmos como não registava há uns tempos a esta parte, talvez por já pronunciar a doença do marido e que supostamente lhe haveria de roubar interesse sexual. No outro dia e seguintes o amor repetir-se-ia com singular deleite carnal nunca antes experimentado. A saúde de Benjamim dera sinais de que estava bem e recomendava-se. A vida e o conforto familiar estava melhor do que nunca e no horizonte Benjamim, a três meses do Natal, só já pensava no próximo presente. A TV, no dizer dele, seria um presente de todos, para todos e muito especialmente para as crianças, que diante do ecran mágico poderiam ver animais a falar ou bonequinhos a movimentarem-se animadamente. As crianças acabariam por centralizar as atenções do pai, perante este próximo presente. Benjamim, com parte das economias feitas à custa de algumas privações, iria materializar o desiderato que lhe vinha de longe e que no Sebastião da Electro Boa Luz, haveria de comprar a crédito a TV que na véspera de Natal iria encher a casa e perpetuar na memória uma quadra festiva nunca antes vivida por nenhum deles. Benjamim pediu ao patrão para lhe dar uns dias de férias nesta quadra e deste modo reforçar-se-ia o conceito de festa de família. As férias seriam também uma surpresa, que ele guardaria.
Adivinha-se um Natal esplendoroso de amor familiar que gestos simples, complementam e reforçam.
A semana que vem jamais será apagada da memória de Laurentina e Sebastião disso será testemunha por lhe caber uma vez mais fazer a entrega domiciliária.
Conforme combinado entre eles, Sebastião faz a entrega da TV na ausência de casa, de Benjamim. Este, preferia não estar presente, antes conhecer a reacção da mulher à posteriori, pela voz de Sebastião. Sentia gozo e vaidade no gesto e indirectamente dele dava conta ao Sebastião que supostamente e em conversas de lana-caprina, difundiria. Benjamim era vaidoso e insuflava o ego se lhe chegasse aos ouvidos que o seu gesto era comentado por terceiros. Ele não se bastava amar, queria que os demais e nestes demais estariam os moços da sua idade e particularmente o Chico Pardelho e o Dário Fominha e outros, que na sombra, sentiam dele ciúme.
Efectivamente as coisas aconteceram como ele programou e o Natal que tradicionalmente era festejado na casa dos sogros, desta vez realizar-se-ia na sua casa, juntando os pais de ambos. Escusado será dizer que de todos os Natais por eles vividos antes, este iria ser por certo o mais recordado.
Sebastião, antes de ligar a TV disse à Laurentina para trazer os meninos porque lhes queria ver a reacção das suas carinhas. Premido o botão ON, as carinhas de espanto das crianças foram tão reveladoras que os olhitos se arregalaram como que desconfiados e assustados do que viam, para logo a seguir emitirem um estridente sorriso e curiosos avançarem para pôr a mão no ecran. Depressa se familiarizaram e sentados os três no chão, sobre duas mantas dobradas em quatro, viram a pantera cor-de-rosa até ao fim, com brilho estrelar nos olhitos e faces ruborizadas pelo entusiasmo que os levava a gesticular energicamente, em especial os gémeos por terem mais idade e melhor percepção do que viam e porque se galvanizavam com as atitudes e fogosidade da pantera. Laurentina não cabia de felicidade e sempre com Benjamim no horizonte, avaliava-lhe o quanto ele os amava. Aqui ou ali não retinha as lágrimas, mesmo diante de Sebastião, o qual testemunharia na pessoa de Benjamim o que vira e que ao jovem marido o comprazeria.
Passada a quadra Natalícia com inusitada alegria geral, Benjamim regressaria ao trabalho depois da passagem de Ano, pujante de saúde e mais gordo, de que as gulodices da época se terão de responsabilizar.