O conto sem título.
Quem sou eu? Ninguém. Apenas eu. O ano era 2020 e só agora eu tive coragem para falar disto. Toda aquela loucura sanitária ainda não tinha começado. Eu ainda era professor numa escola que oferecia cursos de inglês. Estava voltando a cursar uma faculdade que, sinceramente, não queria cursar nem um pouco. Minha mãe já estava doente naquela época. Engraçado, os escritores de hoje reclamam de “não ter o que escrever”. Mas acreditem, enquanto houver desgraças, sempre haverá o que escrever. E desgraça é o sobrenome do mundo em que vivemos. Mas não sei se isto vem ao caso agora.
Gostaria de contar algo que aconteceu num sábado nublado, por volta de umas 15:30 da tarde. A chuva já dava indícios de cair, o ponto de ônibus da Rua do Patrocínio estava vazio. Sentei-me e olhei pro outro lado da calçada, como sempre faço, com aquela cara de paisagem. E de repente, me dou conta de que alguém está vindo. E não era nenhum mendigo que ficava por ali. Eu olhei para o lado e vi que as vestes do homem eram diferentes do que eu estava acostumado. O homem parado bem na minha frente usava uma sandália marrom, cujas amarras iam quase até a canela, uma túnica bege, com um cinturão marrom em volta e uma capa dourada cobrindo-lhe as costas e os braços. Daí, olhei-lhe o rosto. Os cabelos castanhos, partidos do meio da cabeça, compridos, com cachos no final, que lhe caiam pelos ombros. Os olhos castanho-escuros, o nariz oblongo e a barba que realçava o seu queixo partido. Havia meio que um tom de ruivo no castanho de seus cabelos e barba. A pele era branca, sem mesclas. Eu afastei-me um pouco e o homem sentou-se ao meu lado.
“Tu disseste que querías fazer-me perguntas se eu te aparecesse. Pois bem, fala.” Disse o homem num tom barítono agradável, sem defeitos de pronúncia e sem gaguejar.
“És tu quem eu penso que és?” Perguntei.
“Eu sou quem sou”. Ele respondeu. E tenho te ouvido por toda a vossa vida. Por menor que tenha o sentido de vossas palavras. Sei de vossos sonhos. Tanto aqueles que tens quando adormeces quanto os que alimentas quando despertas”.
“Heh! Muitos deles me podem render boas ideias. Assim, talvez boa parte deles não me sejam inúteis.”
“Algo mais queres dizer-me?”
“Que só cometo erros o tempo todo. E que há coisas dentro de mim que são tão horríveis, a maioria eu nem conheço, e as que já conheço nem tenho coragem de dizer-te.”
“Filho, no Monte das Oliveiras, eu as vi. Às vezes até desvio o olhar de tantos pecados que obstinadamente sucedem neste mundo, mas a dor que sinto não me permite ignorá-los. Porém, apesar das mais espessas trevas em vossos corações, eu fui, sou, e sempre serei a Luz do mundo.”
“Oh, Senhor.” Eu repliquei. “ Há tanto que perguntar, mas não tenho um pedido pronto como Salomão. Às vezes, peço clareza, n'outras, peço coisas distintas. Mas hoje, peço-te que me ajude a fazer a coisa certa. Minha mãe precisa de mim. Ela já tem idade e não pode mais trabalhar. E o que ganho não é o bastante para manter a nós dois. Como me tortura o fato de não saber quanto tempo minha mãe ainda tem e nem quanto tempo o Senhor me concedeste. Sem contar que sinto estar balançando no cargo. Acho que fiz tudo errado. E a culpa é minha.”
“Oh, filho.” Ele respondeu. “Já te esqueceste? Não se turbe o vosso coração. Sei do que necessitas antes de o pedirdes. Tende coragem! Eu venci o mundo! As profecias feitas pela Minha Mãe são para que te arrependas e voltes para mim. Não para que te desesperes e caias em agonia. Já tens aí a vossa cruz. Tu já o disseste. Do que mais necessitas saber senão que estarei convosco até o final dos tempos? Não temais! Sede forte!”
“Fica comigo, Senhor. Pois está ficando tarde, a morte avança e eu tenho medo da escuridão, das tentações, da falta de fé, da cruz e da tristeza.”
“Eu estarei sempre com você.” Ele respondeu.
O homem, com um sorriso discreto, se esvai como uma brisa suave e esbranquiçada até chegar ao topo dos céus, onde não pude mais enxergá-lo. Não tive tempo de processar o que aconteceu, porque logo em seguida, meu ônibus chegou.