NADA DO QUE FOI SERÁ DE NOVO DO JEITO QUE JÁ FOI UM DIA.
O astro rei ensaiava seu adeus, numa modorrenta tarde de sábado outonal, quando o rapaz esquelético e cabeludo puxou a cordinha da campainha do ônibus da linha 266, ligando o bairro do morro da Boa Vista a Candelária. O ponto do cemitério Campos da Ressurreição. O coletivo freou bruscamente. -"Valeu, motorista." A chinela Havaianas afundou numa poça d'água. Ele tirou a máscara e olhou para a grande avenida a frente. -"Prá lá, Roberto." Disse a si mesmo, erguendo a calça sem cinto. O bairro industrial. A antiga tecelagem, onde havia trabalhado por longos e áureos vinte anos. Ele coçou a cabeça. -" Foi bom enquanto durou." Deu uma golada profunda no corote de cachaça. Escorado no muro da antiga tecelagem, ele puxou lembranças boas na memória. O sorriso veio ao lembrar dos amigos. -" Nunca mais vi o Leandro, o Zé Roberto e o Tico." O sorriso se desfez ao lembrar a demissão, considerada por ele uma injustiça. As janelas quebradas denotavam o abandono do lugar. -"Faliram anos depois, castigo!" Cambaleando, ele passou em frente a uma igreja evangélica. -"Aqui era a Dinossauros! Acabaram com tudo." A discoteca cheia de jovens, as músicas antigas do Sampa Crew, as galerad dos bairros, as bebidas, as luzes, os passinhos de dança, as roupas de neon, o velho Chevette branco com a dupla faixa preta na lateral, estavam gravados na sua mente. Tentou dançar mas as pernas trançaram. O centro da cidade. As antigas lojas fechadas. O movimento fraco do comércio. Uma vendedora olhando pra cara da outra. -"A cidade já foi boa." Pensou. -"Não tem mais Arapuã, Mesbla. Fechou o bar do Digão, a pizzaria do Tio Pedro, a sapataria do Belarmino. -"Quanta roupa linda comprei nas Lojas Marilu?! Tempo bom que não volta mais. Nada do que foi será de novo do jeito que já foi um dia." Relembrando um trecho da música de Lulu Santos, sorriu. -" Acabaram com tudo." Ele olhou para a estação ferroviária. Quase foi atropelado ao atravessar a via. -"Estação cultural. Isso aqui vivia lotado." Fechou os olhos e pode ouvir o apito do chefe da estação. A locomotiva se aproximando. As pessoas se despedindo. A fila no guichê. A lanchonete concorrida. As crianças correndo. -"Dentro do trem, aquele garçom desfilava, pelos corredores, empurrando aquele carrinho de garrafas, salgados e lanches." Abriu os olhos e não viu nada, ninguém. -"Tiraram até os bancos de ferro." Um trem de cargas se aproximou. Mais de cem vagões passaram pela estação, sem parar. -"Antes era RFFSA." Roberto saiu. Um mercado era sua próxima parada pois a cachaça tinha acabado. Poucas moedas foram suficientes pra comprar uma garrafinha de aguardente. A noite caiu e trouxe o frio. Sem grana pra voltar ao albergue, resolveu dormir ali mesmo, nas escadarias de mármore da matriz de Santo Antônio, sobre um pedaço de papelão que antes envolvera uma tevê de 80 polegadas de alguém. As estrelas no céu. Roberto fez o sinal da cruz. A imagem do santo casamenteiro na cúpula da igreja onde ele e Edileuza se casaram. Há doze anos ela tinha ido embora para a Bahia e ele começava a afogar as mágoas no álcool. Eram oito horas da manhã quando o sacristão chamou a polícia militar. -"Vai ser enterrado como indigente. Não tem documentos." Disse o policial. A ambulância levou o corpo do morador de rua. O fato ganhou uma pequenina nota no jornal. FIM