Enganou-me o vendedor de livros.
- Sérgio, comprei gato por lebre. Acreditei no Djalma, do sebo Maravilhas Em Papel, e danei-me. Cinco tijolos de ouropel, e não de ouro. Pagar-me-á caro, muito caro, aquele carequinha vendedor de livros. Deixe estar, jacaré; a lagoa há de secar. Um dia é da caça; o outro, do caçador. O mundo não para; dá voltas. Aquele pouca sombra vai ver o que é bom para a tosse e com quantos paus se fazem uma canoa. A vingança é um prato que se come frio. Peguei a mania dos anexis. Agora, cheio de suspeitas, irei à delegacia de polícia, e solicitarei ao delegado me mostre a capivara daquele aeroporto de mosquito e pintor de rodapé. O filho-da-mãe, que sabe que sou traça-de-livros e rato-de-biblioteca, telefonou-me, hoje, de manhã, um pouco antes das dez, e disse-me: "Senhor Gilberto, tenho em mãos cinco volumes de um dicionário do Laudelino Freire, novíssimos. Sei que é o autor do teu agrado. Estás interessado em adquiri-lo?" "Do Laudelino Freire!?", perguntei-lhe, admirado, espantado com tão agradável surpresa. "Sim, senhor Gilberto. Do Laudelino, o mestre Laudelino." "Dicionário novo, Djalma?!" "Novo, não, senhor Gilberto. Novíssimo!" "Mande-mos, imediatamente. Quero recebê-los ontem. Se é do Laudelino, é meu. Cinco volumes?" "Sim. Cinco volumes." "São meus os cinco. O Laudelino fará companhia aos mestres Silveira Bueno e Caldas Aulete." "Negociemos o preço." "Diga para o boy trazer o Laudelino, Djalma. Enquanto ele vem, negociaremos o preço de tal preciosidade. Negociaremos o preço, que o valor é inestimável. Agraciaram-me os deuses, que hoje estão de boa veneta, com a fortuna! E assim que o boy chegar, pago-te no cartão." "Sim, senhor Gilberto. Ordem dada, ordem executada. O boy já saiu daqui. Chegará na tua casa num pulo." E assim foi, Sérgio. Assim foi. Nem bem eu e o Djalma havíamos acordado o preço do dicionário, toca-me a campainha. Era o boy com o pacote. Paguei-lhe o preço combinado com o Djalma, e entregou-me o boy o pacote, que pesava, mensurei-lhe a tonelagem assim que o tive em minhas mãos, dois mil quilos. Despedi-me do boy, fechei-lhe, com certa má educação, reconheço, a porta, antes, mesmo, de ele me haver dito 'Tenha um bom dia, seu Gilberto", e corri, desajeitadamente, pois era demasiado o peso dos livros, à sala-de-estar, onde, exausto, cheguei, cachoeiras de suor a escorrerem-me das têmporas, e com a língua para fora da boca, e célere pus-me a abrir o pacote. E aos meus olhos reluziram cinco livros, grossos, grandes, imensos, monumentais, grandiosos, de capa dura, marrons. Admirei-os. Temi tocá-los. Acreditei que se os tocasse, eles desapareceriam como num passe de mágica. Eu sonhava! Sonhava, maravilhado, no sétimo céu, num estado espiritual de alumbramento indescritível. Peguei o Laudelino. Acalentei-o. Embalei-o. Na lombada do volume um, eu li: Grande e Novíssimo Dicionário da Língua Portuguesa, e o venerável nome do autor de tão prestigiada obra, Laudelino Freire. E com suavidade movi-lhe a capa; e li a edição: era a segunda; e a editora: Livraria José Olympio Editora; e... e... Sérgio, você não me acreditará o que li ao pé da página. Jamais. O ano da publicação do dicionário: 1954. Novíssimo! Novíssimo, disse-me o Djalma, aquele pé-de-soldadinho-de-chumbo! Tem o dicionário sessenta e oito anos de vida! Sessenta e oito! É quase um ancião! Novíssimo, disse-me o Djalma, aquele tratante! Pagar-me-á muito caro, com a vida, aquele anão-de-jardim! De 1954! Novíssimo!? 1954!