Meditação
Acendeu o incenso, ajeitou a almofada no chão, sentou-se nela de pernas cruzadas, respirou fundo, fechou os olhos.
Deixar fluir, pensou.
Buscava um inédito estado meditativo. Mindfulness, dizia o livro de autoajuda do momento.
Os pensamentos, porém, pareciam não ligar para toda aquela encenação budista e fluíam com a fúria habitual: os boletos seguidos dos deveres mais variados, as pendências rotineiras emendadas com lembranças triviais.
E, para piorar, tinha aquele vento chato distraindo-o ainda mais. Um vento tão insistente que, quando abriu os olhos, viu que fazia a fumaça do incenso espalhar-se em redemoinhos imprevisíveis.
Levantou-se, fechou a janela, tornou a se sentar.
A mente é um limpo céu azul, pensou enquanto fechava os olhos.
Mas logo a sobrancelha coçou, a perna começou a amortecer, e o corpo todo era uma mancha escura contra o idealizado céu azul. E o vento. Abriu os olhos novamente, algo contrariado, e viu o mesmo vento fazer a fumaça do incenso dar piruetas desconexas.
Calou um palavrão que não combinava em nada com o tutorial zen lido na internet.
Levantou-se e fechou a porta do quarto, impedindo qualquer possível corrente de ar.
Sentar, respirar fundo, fechar os olhos, tudo de novo.
Só posso me conhecer no silêncio de minha consciência ilusória, pensou.
Mas o vento de imediato se fez sentir agitando ares, ideias e tormentos.
Abriu os olhos, com uma irritação franca e já bem conhecida.
E só então quase compreendeu a natureza da ventania torcendo a fumaça do incenso. Um quase muito breve, dois estranhos que cruzam na rua e pensam reconhecer um rosto antigo... Pois então a irritação frustrada desabrochou de vez.
- Não dou pra isso! - disse em voz alta.
Saiu do quarto e foi atrás de seus boletos, de suas pendências, preso ao peso do próprio corpo, e de olhos decididamente fechados.