O HIPOCONDRÍACO

O HIPOCONDRÍACO

– Como tem passado, senhor Fuíca? – indagou minha mãe ao avistar do outro lado da rua o verdureiro que por ali passava todas as manhãs, fizesse chuva ou sol.

– Vou indo como Deus quer, Dona Maria. Sabe como é, né? Com essa minha idade e todos os meus problemas de saúde, é sorte que eu ainda esteja vivo. Mas é o Pai quem sabe o momento certo de cada um de nós partir desta para outra.

– Que nada, seu Fuíca, daqui posso ver que o senhor está é muito bem. Não pense que qualquer pessoa consegue fazer o que o senhor faz. Para andar todos os dias como o senhor anda, precisa ter saúde, vitalidade.

– Saúde, vitalidade?! Não se iluda, Dona Maria. As aparências enganam. Se consigo, é com a graça de Deus. Hoje está aqui me atacando o bico de papagaio de novo. É uma dor que só a senhora vendo, ou melhor, a senhora sentido.

– Deus me livre e guarde. Já tenho cá os meus males me afligindo – mamãe disse aquilo sorrindo como sempre fazia ao ouvir as queixas do verdureiro.

Fuíca era uma pessoa conhecida por todos em nossa cidadezinha. Conhecida e admirada. Afinal não era qualquer pessoa com tantos “problemas de saúde” que conseguia empurrar uma carroça de verduras por mais de dez quilômetros diariamente, subindo e descendo ladeiras por ruas calçadas de pedras.

Meu pai dizia sempre que somente um cavalo conseguiria fazer o que ele fazia.

E assim ia levando a vida o verdureiro Fuíca. Um dia estava com a coluna em frangalhos, no outro o famoso bico de papagaio quase lhe impedia de caminhar, em outro mais era a asma que quase lhe tirava o fôlego.

A resistência de seu Fuíca era de verdade admirável. Conseguia driblar um verdadeiro rosário de doenças e sair de casa religiosamente às seis da manhã todos os dias para negociar as suas verduras.

Segundo ele eram mais de dez quilômetros cada uma de suas jornadas.

– E hoje, como está, seu Fuíca? – procurou saber mamãe dias mais tarde, numa das muitas manhãs geladas do mês de julho.

– Com este tempo, Dona Maria, só gente jovem como a senhora...

– Mas o senhor está sentindo alguma coisa hoje?

Mamãe fez aquela pergunta sabendo que certamente alguma doença muito séria estava mais uma vez rondando a pobre criatura naquela manhã gelada.

Mentalmente mamãe tentou acertar qual seria o mal daquela vez.

Tinha ela já a lista com inúmeros nomes quase toda decorada: bico de papagaio, asma, coluna torta, nervo ciático, sopro no coração, gripe, tosse seca, reumatismo, hérnia de disco, pedra nos rins, na bexiga, na vesícula...

Minha mãe, espirituosa que era, chegou a fazer um lista em uma folha de papel almaço com quase trinta nomes de males relativos à terceira idade. Colocou esta lista grudada na porta da cozinha e diariamente ia ticando uma por uma.

Seu Fuíca jamais repetiu uma doença na mesma semana.

– Ah, Dona Maria, nem lhe conto... – começou a falar o verdureiro em resposta à pergunta que lhe fora feita.

– O que foi agora, seu Fuíca?

Minha mãe sabia, por experiência de longos anos, que por certo um novo mal seria anunciado. E foi!

– Acho que estou com ozaime.

Alzheimer!

Só faltava aquela. Aquele nome não estava na sua lista.

– Alzheimer?! E por que o senhor acha que está com este mal, seu Fuíca? Isso é coisa de velho – brincou mamãe.

– A senhora acredita que acabei esquecendo de pagar a conta de luz este mês. Onde já se viu uma coisa dessas? Isso só acontece com quem está ficando ruim da cabeça.

– Ora, seu Fuíca, quem não esquece alguma coisa de vez em quando? Isso acontece com todo mundo. Para mim o senhor está muito bem. Está forte, vistoso, corado.

– Corado, Dona Maria?! Quem dera. Esta vermelhidão na minha cara é alergia. Sou alérgico a um monte de coisas. Tudo que eu como me faz mal.

Minha mãe sorria ao ver o seu Fuíca desfilar ao longo do mês uma imensa variedade de doenças. Era de fato uma para cada dia.

Entretanto o verdureiro, sempre caindo pelas tabelas, ia levando a vida e empurrando seu carroça de verduras.

E lá se iam os dias e seu Fuíca, segundo ele mesmo, morrendo aos poucos.

– E hoje, seu Fuíca, que mal o aflige? – indagou seu Nestor, o dono da farmácia.

– Acho eu estou com sopro no coração. Olha, é um cansaço que quase não aguento. Estou pensando até em diminuir a quantidade de verduras na carroça. Acho que vou deixar de vender certas coisas. Chuchu é uma coisa que pesa muito.

Cenoura então nem se fala. E a mandioca... o senhor já viu como mandioca é uma coisa pesada?

O negócio e trabalhar com couve, alface, agrião... Coisas leves. Assim me livro desta sensação do coração querer sair pela boca.

– Deixa disso, seu Fuíca que o senhor está é vendendo saúde – disse sorrindo o farmacêutico.

– O senhor não sabe de nada, seu Nestor. Quem sabe de minha vida sou eu. Estou mal, pena que ninguém acredita.

Nós, crianças que éramos, eu e meus irmãos, ficávamos observando o verdureiro passar principalmente aos sábados, quando não tínhamos aulas. E, como minha mãe fazia, tentávamos sempre adivinhar qual a doença que seria anunciada naquele dia.

Muito raramente acertávamos. Às vezes era anunciada uma doença que sequer sabíamos de sua existência.

Osso fraco! Por aquela ninguém esperava.

Mais tarde minha mãe, que era enfermeira, nos explicou que existia mesmo uma doença que deixava os ossos fracos: osteoporose.

***

Com o tempo foi instalada na rua onde morávamos uma espécie de banca de apostas. Aos domingos nos reuníamos na casa de um amigo e apostávamos em uma determinada doença e escolhíamos o dia da semana para que ela fosse anunciada. Aquele que acertasse, ganharia o que havia sido arrecadado. Fizemos isto por meses a fio até mamãe descobrir e nos dar um sermão interminável.

– Onde já se viu brincar com um coisa dessas? – disse ela em tom sério. – Com doença a gente não brinca.

Mais tarde eu a ouvi contando tudo para o meu pai.

Contudo, ao invés de outro sermão por parte dele como era de se esperar, o que ouvimos dele foi o seguinte:

– Tem limite de idade para se apostar nesta banca de vocês?

Foram-se os anos e o verdureiro, ao longo deste tempo, foi ampliando o seu vocabulário em se tratando de doenças relacionadas à terceira idade.

E o que estranhávamos era que ele jamais repetia a mesma doença numa mesma semana.

– Mas o senhor está com a aparência ótima. Nem parece que está mesmo doente – dizia um.

– Para falar a verdade, estou achando o senhor ótimo, seu Fuíca. Para mim o senhor não tem doença nenhuma. Isto é tudo coisa da cabeça do senhor – comentou outro.

Pronto! Aquilo foi o bastante para que o verdureiro nunca mais passasse pela porta da casa do infeliz que fizera aquela observação.

– Uma hora dessas vocês vão ver que eu estou mesmo doente. Aí vai ser tarde – dizia ele de vez em quando, visivelmente aborrecido com os comentários que ouvia sobre sua saúde.

Meses se passaram, a nossa banca de apostas foi desmontada por pressão de minha mãe e da mãe de um de nossos amigos. Todavia, lá em casa continuávamos tentando adivinhar qual seria a doença da vez.

Certa manhã ouviu o som característico de um auto falante anunciando pelas ruas da cidade o falecimento de alguém.

“Faleceu nesta cidade, aos sessenta e dois anos...”

Era seu Fuíca que havia morrido.

Motivo?

Nem ele ficou sabendo, pois morreu dormindo o desafortunado.

Mamãe não foi ou sepultamento. Estava de plantão naquele dia.

Dias depois, já melhor, ela resolveu ir até o cemitério para visitar o seu túmulo.

Acho que mamãe tinha por aquele pobre homem um misto de pena e admiração. Tanto que se sentiu no dever de se despedir dele à sua maneira.

Mas grande foi a sua surpresa quando ao se aproximar de seu túmulo viu em letras garrafais gravada em uma placa de bronze o seguinte epitáfio:

“EU NÃO DISSE QUE ESTAVA DOENTE?”

Analiamaria
Enviado por Analiamaria em 30/01/2022
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