20 DE JANEIRO, DIA DO FUSCA.

Nem bem o rapaz colocou os pés na calçada da casa da tia, na Alameda das Hortências, que a velha senhora pulou em seu pescoço, quase o derrubando. O perfume de alfazema dela inundou os sentidos, o seu choro compulsivo dava pra ser ouvido da esquina, onde ficava o bar do Estanislau. -"Lilico, Lilico...meu mundo caiu." O rapaz viajava na maionese, tentando adivinhar a causa de tanto sofrimento. Só tinha visto a tia, daquele jeito, uma única vez, quando a tia soube da morte do cantor Waldick Soriano. -"Seu tio, Petruquio, bateu as botas, tadinho." Lilico tentava se lembrar do tio, o qual tinha visto duas vezes apenas, no natal de 1959 e no velório de seus pais. O rapaz era órfão e foi criado pela tia, desde os sete anos. Agora, as portas dos dezoito anos e da maioridade, teria que amparar a tia nesse momento tão difícil. -"Era o tio careca do Fusca vermelho." Lembrou. Ele abraçou Gertrudes e a conduziu ao sofá. Um copo de água com açúcar. Um abraço e um cafuné. -"Deus o chamou. Descansou, enfim." A mulher soluçava. Pudera, era seu único irmão. -"Vamos ter que viajar até Presidente Prudente, onde meu irmão vivia " A viagem às pressas. O luto. O velório. Gertrudes e Lilico ficou três semanas fora de casa, enquanto Lilico retornou por motivos de trabalho. O inventário. Herança, -"Meu irmão era tão bom que me deixou um terreno de herança." Disse Gertrudes ao telefone. -"O tesouro dele deixou pra você, Lilico." O rapaz ficou confuso. -"Tesouro? Não sabia que o tio era rico." Gertrudes retornou. Ela se manteve em silêncio, até que, duas semanas depois, o caminhão da transportadora estacionou em frente a casa. -"O tesouro chegou." Gritou a mulher. Lilico deixou o vídeo game de lado e correu pra rua. Os funcionários da transportadora abriram o baú. A rampa de ferro. -"Caçarola!" Lilico não acreditou no que via. Um Fuscão, ano 72, vermelho sangue saiu do caminhão. -"Olha que belezinha, tá conservado, tudo original. Se quiser, te dou dez mil reais agora." Disse o motorista, olhos brilhando e babando no carro. -"O Fusca começou a ser fabricado em 1959, no Brasil. Por 23 anos foi o carro mais vendido, o campeão de vendas no país. Sua mecânica é fácil." Disse o ajudante. Lilico olhou para a tia. -"Sinto muito mas esse é de família, não tem preço." Gertrudes se desfez de alguns vasos de samambaia, abrindo espaço no alpendre para o Fuscão. -"Como era o tio Petruquio? Ele devia amar esse Carango." Lilico passou a se interessar pela vida daquele que lhe dera um presente inesperado e tão simbólico. Gertrudes mostrou a ele álbuns de velhas fotografias. Petruquio abraçado ao carro, em centenas de cenários. Os dois numa cachoeira, em Aparecida do Norte, em vários casamentos, em festas do peão, em encontros de Amantes do Fusca, o carro cheio de crianças . -"Olha, ele pintou o carro de Herbie, igual o desenho." Vibrou o rapaz. A primeira viagem no carro foi com a tia, ao supermercado. Ao saírem com as sacolas, viram seis homens em volta do Volkswagen. -"Cara, te dou quinze mil, dinheiro vivo carro." O outro dobrou a aposta. -"Dou trinta. Um outro tirava fotos do veículo. Logicamente, o rapaz rejeitou todas as ofertas. O primeiro rolê aleatório na night. O rapaz magrelo, sardento e de aparelho dentário pisou fundo e fez um zerinho em frente a lanchonete. Lilico saiu do carro e se juntou a turma de amigos nerds. -"Uau. Lilico está de carro, quer dizer, de fusca." Disse o Waldsley, metido a Einstein. O garçom trouxe as limonadas da galera. Os outros rapazes, nas outras mesas, puxavam conversa com ele, sobre o Fusca. O garçom disfarçou e colocou um bilhete no bolso de Lilico. Ele achou que era de alguém, uma proposta de mais um querendo comprar o carro. Só em casa ele lembrou daquele bilhete. -"Adoraria passear no seu Fusca vermelho. Herculana." Era o bilhete da menina mais popular da escola. Popular como o bom e velho Fusca. Lilico foi até a garagem e beijou o capô do seu carango. -"Já peguei amor. Você vai ficar comigo pra sempre." FIM