Despejo
“Perdão”, falou o homem atrás de mim. Nem fiquei brava com o esbarrão: pouco espaço, caixas empilhadas, gente tão apressada que até devia esquecer por que tanta pressa... Quando me virei pra olhar, paralisei. O mundo era pequeno, mas sempre podia ser menor do que eu imaginava.
Já fazia quase um ano desde que eu vi aquele homem pela primeira vez: era grande, tinha o rosto pra sempre queimado de sol, apesar de que agora parecia mais queimado que antes, no dia em que ajudou a mudar a minha vida, e a de todo mundo que morava no Nossa Senhora das Graças. Tinha esse nome por causa da igreja que ficava do lado do terreno; coisa de gente devota, só podia ser; de gente que conhecia o alívio que é encontrar um lugar pra viver.
Fazia três anos que eu morava lá, mas tinha gente há mais tempo. A gente, eu e o Ronaldo, foi pra lá depois que eu soube que tava esperando a Ana Paula. Por causa dela a gente resolveu viver juntos. Eu tinha uma prima morando lá, a Roseli; foi ela que me deu o toque. Ela explicou que o terreno era de uma empresa que não existia mais, e que ninguém mais ia reclamar aquilo. A prefeitura tava fazendo obra lá, tinha até escola pras crianças do bairro. Sim, a gente tinha um bairro, nada de favela: jardim, mercado, padaria...
Foi por isso que eu me assustei quando fiquei sabendo que a gente ia ter que sair de lá; o dono do terreno ganhou uma ação judicial, dessas coisas eu não entendia nada. Eu só pensava pra onde ia levar minha família. Muita gente dizia que aquilo não ia dar em nada, mas outros tinham medo. No fundo, ninguém sabia o que pensar; um dia era de esperança, o dia seguinte, de agonia.
Até que chegou a manhã que não deu pra evitar. A polícia veio com carros, cavalos e gás de pimenta, mandando todo mundo embora. Pra todo lado que você olhava tinha gente correndo, arrumando as coisas pra levar sabia Deus pra que canto. Tinha abrigo da prefeitura, mas era coisa de criança pensar que dariam um jeito de conseguir lugar pra todo mundo. A Roseli e as três filhas saíram logo, pra que discutir? Depois fiquei sabendo que tinham ido pra um outro terreno, menor, também invadido. Eu, o Ronaldo e a Ana Paula íamos pra casa da minha mãe, era o que dava pra fazer; íamos viver apertados com ela, minha tia e mais minhas duas irmãs em três cômodos; pelo menos sempre ia ter alguém cuidando da Ana Paula quando a gente estivesse trabalhando.
Mas nem tudo foi tranquilo naquela manhã. Teve muita revolta: carro da polícia incendiado, briga com policial, gente machucada... Uma guerra perdida, a nossa força era muito menor; pra eles, a gente era invasor, malandro, ladrão. No fim não adiantou nada, só serviu pra lotar o pronto-socorro. No meio da correria, eu só pensava em ir embora. Mas como tiraria todas as minhas coisas da antiga casa eu ainda não sabia. A prefeitura mandou uns caminhões de mudança, mas não deu pra todo mundo. Um policial disse pra voltar depois de três dias pra buscar as coisas, antes da demolição. Muita gente ouviu a mesma história e acreditou.
Pegamos uns brinquedos da Ana Paula, uma sacola de roupas e uns mantimentos e fomos embora, de ônibus, pra casa da minha mãe. Saí com o peito cheio, nem conseguia respirar direito. Minha vontade era cair no choro, desfazer aquele nó na garganta; mas minha filha me olhava, e eu precisava dizer que tava tudo bem.
Esperei os três dias e voltei pro Nossa Senhora pra buscar nossas coisas, com o Ronaldo e um carro emprestado. E foi aí que encontrei o homem. Ele ficava na frente do terreno com mais dois, fazendo a segurança. “Aqui é particular”, ele foi logo dizendo. Expliquei que só ia buscar umas coisas e pronto, mas ele me olhou, deu um sorriso e apontou pro terreno. Naquela hora, tudo que era lágrima desabou ali mesmo, em frente do deboche: casa, jardim, padaria... Tudo no chão. “Mentiram pra gente”, eu falava e repetia; primeiro baixinho, depois aumentando até gritar. Ele tentou me acalmar, me segurou pelo braço; eu berrava: “Mentiram pra gente!”.
Me soltei e corri pro meio do desastre: vidro, madeira, concreto, tudo amontoado sem valer nada agora. Em volta de mim, corriam uns cachorros, uns gatos miavam; deviam procurar alguma coisa no meio do lixo ou os donos de antes. Soube de alguns bichos que ficaram presos pra serem levados depois dos três dias; não deu tempo. Quanta morte, quanta tristeza... Precisava?
Andei mais um pouco, com os olhos pingando: a cabeça loira de uma boneca aparecia embaixo de uma porta tombada; um caderno de escola; o pedaço de uma cortina bordada sendo puxado pela boca de um cachorro... Todo mundo tinha menos.
Saí do terreno mais vazia, o Ronaldo quieto. O homem da segurança olhou pra gente e falou “Melhor vocês irem embora, não tem mais nada aí”. Tinha, sim, e tinha muito, mas discutir pra quê?
De repente ele tava ali na minha frente, na fila do mercado, tentando escolher o melhor frango congelado. Olhava tudo e não se decidia, também pechinchava. Guardar o que é dos outros não deixa ninguém mais rico...
“Sim, tudo bem”, eu disse, ele não devia saber mais quem eu era, aquele pedaço de história era meu. E fiquei pensando que a gente devia conhecer as palavras que usa: perdão, sim e não.