A VIAGEM - O CHOQUE

Quando o motor parou, todos queriam logo sair para esticar as pernas. Apenas um dia havia passado, no entanto o cansaço já era visível no rosto de alguns passageiros.

As crianças ainda não sentiam o desgaste, elas se acomodavam de qualquer jeito. Em algumas ocasiões eu viajei deitado debaixo do banco, sobre uma rede que minha mãe havia esticado no piso do ônibus. Os bancos de madeira não ofereciam nenhum conforto aos passageiros, razão pelas quais todos tinham um forro de rede ou pano para se sentarem. Sempre que parávamos, era uma aventura, porque tínhamos que nos ajeitar do melhor modo que podíamos e a aquela parada era a primeira que fazíamos, para jantar e dormir.

Foi a primeira vez que eu dormi numa cama. Eu e outros irmãos.

A cama parecia enorme e o colchão, já muito usado, exalava um cheiro forte de suor de outras pessoas que havia nele se deitado outras vezes. De qualquer forma o sono veio logo, o cansaço era grande.

Quando acordamos, eu e outros irmãos fomos tomar o café da manhã.

Porém, o que mais me impressionou e provocou em mim enorme curiosidade foi justamente a luz elétrica. Eu já tinha visto a luminosidade daquela “coisa”, que ficava pendurada num fio. Eu conhecia a lamparina, a vela, o lampião e sabia como eles funcionavam, no entanto não conseguia entender como aquela pequena bola de vidro conseguia clarear bem mais que a lamparina e sem fumaça.

Minha curiosidade me cutucava e pedia explicações. Eu queria entender como aquela “coisa” clareava. Eu havia visto alguém apertar um pequeno objeto preto que ficava pendurado perto dela e ela havia-se iluminado .

Quando todos saíram, estando sozinho no pequeno quarto, subi na cama e depois de tirar a lâmpada do bocal, enfiei o dedo neste para ver como seria a tal da energia elétrica.

Esta foi minha primeira experiência chocante que eu tive. Caí sobre a cama muito assustado e o dedo queimado. Naquele momento, eu não queria que ninguém soubesse de minha aventura. Poderia até ser repreendido por meu pai, por isso fiquei calado e sozinho com minha experiência. Os outros só vieram saber da minha aventura muito tempo depois.

Tomamos café, leite e tapioca com manteiga de garrafa e outros bolos fornecidos pela pensão e logo estávamos outra vez viajando, para mais um dia de aventura naquela estrada poeirenta.

A próxima parada foi numa cidade bem maior e desta vez ficamos um dia inteiro nela. O motorista havia levado o “ônibus” para um pequeno conserto e somente no dia posterior voltaríamos a estrada. Durante todo o dia, ficamos na porta da pensão olhando e admirando as coisas diferentes que víamos.

Quando vi os postes fincados na calçada e olhei para o alto, tive a impressão de que eles estavam se movimentando. Imediatamente agarrei-me nele com medo de cair. Era apenas uma ilusão criada porque as nuvens se deslocavam e eu as olhava como referência. Com a impressão de que eu ou o poste ia cair então eu me agarrei nele.

Eu me sentia tonto por tantas coisas novas que meu cérebro ainda não conseguira processar. Eram muitas as novidades para um matuto em tão pouco tempo. Não sei o que pensavam os outros, essa era, no entanto minha visão daquele novo mundo que eu ia descobrindo.

Meu irmão mais novo andava de um lado para outro da rua como se estivesse explorando um mundo desconhecido e assustador. Outro mais velho ficava olhando as pessoas que passavam. Ele se maravilhou com uma bicicleta que viu pela primeira vez. Ainda me lembro quando ele disse que ainda teria uma, igual àquela.

Toda a família reunida esperava a chegada do ônibus para retornar à estrada. Dois irmãos, dos mais velhos, haviam-se arriscado indo, mais longe e logo retornaram contando suas aventuras nas incursões que fizeram pela cidade. Naquele momento eu passei a admirá-los ainda mais por aquela aventura. Por muito tempo eu os invejei por isso. Eu era ainda muito pequeno e muito bobo para ousar sair de frente da casa que servia de pensão.

Quando o ônibus chegou já passava das quatro horas. Eu soube das horas, quando alguém perguntou ao motorista. Depois de minutos estávamos novamente na estrada, rumo ao nosso destino, São Paulo.

Quando atravessávamos o estado de Pernambuco, um dos passageiros viu um caminhão seguindo ao lado do ônibus transportando cebolas, esticou o braço e arrancou uma. O motorista do caminhão deve ter visto pelo retrovisor e logo parou o caminhão e foi tomar satisfação com o motorista do ônibus. Por causa de uma cebola estabeleceu-se uma grande confusão que quase virou uma briga.

Dois dias depois acampamos na beira de um pequeno córrego e ali ficamos por um dia, porque precisávamos descansar. Durante a noite dormimos nas redes armadas em algumas árvores que existiam nas margens do córrego. Foi uma ótima parada, podíamos tomar banho em água corrente.

Era necessário tirar a inhaca da viagem.

Ao chegarmos à Bahia, na cidade de Feira de Santana, tivemos que nos vacinar contra alguma coisa que eu não sabia. Meu sofrimento foi enorme, eu morria de medo de injeção. Tive que ser imobilizado à força para o sacrifício. Naquele dia, lembrei-me de outra injeção que tomara anos antes, quando foram necessárias duas pessoas para me segurar, tal era o meu medo da agulha.

Depois do sofrimento e da burocracia vencida, seguimos viagem. Numa das paradas, em um posto de gasolina na beira da estrada, em plena madrugada, pela primeira vez senti o cheiro de gasolina misturada ao cheiro do óleo queimado. Nunca mais esqueci aquele odor. Toda vez que o sinto, meu pensamento volta a um passado já bastante distante dos dias de hoje.

A rotina de todos os dias era a viagem que se prolongava e que parecia ser interminável. Eu não sabia quanto tempo ainda teríamos que viajar. Durante as horas de vigília, observava o horizonte inóspito da caatinga ou as regiões que se estendiam além de nossa visão. Sempre parávamos em alguma cidade, para um descanso necessário e encarar o restante da viagem que ainda demoraria.

Naquela época, depois de vários dias de viagem, começamos a andar numa estrada preta, que não tinha poeira e não dava solavanco.

Era o asfalto. Não sei exatamente em que local foi.

Numa madrugada, fui acordado por meu primo, mostrando-me luzes ao longe. A cidade parecia ser grande, no entanto, parecia que estávamos em cima dela. Como era de noite, somente depois de algum tempo pude ver que estávamos descendo uma estrada que serpenteava na serra.

Depois de muito tempo olhando as luzes que se encontravam distante, finalmente chegamos a uma cidade enorme. O ônibus rodou muito tempo pelas ruas da cidade e, finalmente, chegamos a um posto de gasolina, onde iriam abastecer o ônibus. Naquela hora senti um cheiro forte e diferente. O odor era horrível, parecia ser de algo podre, mas tinha um ingrediente nele que eu desconhecia.

Era uma mistura de odores que em nada nos agradava.

Este talvez tenha sido o primeiro grande impacto que tivemos quando entramos na cidade do Rio de Janeiro, em plena madrugada. Era uma experiência que eu nunca havia tido e cada nova coisa que eu via era uma sucessão interminável de efeitos visuais que eu ia tendo. Mas aquele cheiro era horrível.

Ruas e avenidas enormes, lojas iluminadas na madrugada, mostravam seus manequins expostos, vestidos e em várias posições. Parecia pessoas que ficavam paradas naquelas posições para servirem de objeto de apreciação daqueles que passavam.

Nas ruas desertas, apenas um ou outro veículo e também algumas pessoas transitavam despreocupadamente naquela madrugada fria e fedorenta.

Meus olhos arregalados tentavam abarcar tudo que ia passando, era como se quisesse ver e reter tudo que via em minha frente, enquanto o ônibus trafegava rumo a um local determinado, onde o motorista sempre parava quando chegava.

Quando, finalmente, paramos, alguns dos passageiros desceram e nós ali ficamos por mais de hora, esperando que seus objetos fossem descarregados.Enquanto o trabalho era efetuado, nós os menores, ficamos encolhidos sobre os bancos, enrolados em panos, tentando nos esquentar-nos e absorver um pouco de calor.Estávamos no mês de julho.

A partir dali haveria mais espaço no ônibus e de acordo com aqueles que já haviam feito o trajeto, passaríamos por diversas pequenas cidades que existiam na rodovia que nos levava ao nosso destino final.

Finalmente, no dia 16 de julho de 1956, meu pai levantou-se do banco em que estava sentado e olhando para todos que ele sabia que nunca tinham viajado e disse:

- São Paulo, estamos chegando em São Paulo.

As palavras dele pareciam dizer que o possível sofrimento havia acabado, porque eu ouvi alguns dizerem:

- Graças a Deus, chegamos...

Nunca esqueci aquele momento na minha vida. Já havíamos passado por tantas cidades e nenhuma vez eu sentia uma emoção como aquela. A emoção tomou conta de todos que ainda se encontravam dentro do ônibus. Lembro-me de ter visto minha mãe, rezando e agradecendo a Deus por aquela viagem e nossa chegada.

Depois de minutos intermináveis o ônibus parou no seu destino.

Todos estavam ainda assustados com aquela grandiosidade de cidade que se havia descortinado aos nossos olhos. Os mais velhos pareciam estar à vontade, nós, os pequenos, no entanto, ficávamos encolhidos num canto, perto de nossa bagagem que estava sendo descarregada.

O frio cortante nos obrigava a isso, nunca havíamos sentido algo igual. Nem mesmo os pequenos cubos de gelo que eu havia pegado na minha cidade, pareciam tão frios como aquela madrugada.

Nossos agasalhos eram apenas mantas de algodão cru e até redes que minha mãe estava usando para nos proteger do frio da cidade. Enquanto as bagagens eram descarregadas, meu irmão mais velho olhava em todas direções procurando por um outro irmão que já morava em São Paulo e deveria vir buscar-nos para nos levar à casa que havia sido alugada.

Depois de horas de espera ele apareceu. Vinha acompanhado de um primo que também já morava na capital e vinha ajudar-nos a levar nossas coisas para nossa nova casa. Eles haviam alugado um pequeno caminhão e depois de colocarem tudo sobre ele seguimos por mais de hora até a nossa primeira moradia na cidade.

Quando o pequeno veículo parou e começamos a descer, vários olhos curiosos de pessoas residentes na rua olhavam e cochichavam entre si.

Nós éramos intrusos e retirantes e para outros, simplesmente baianos.

Assim eram chamados quase todos os nordestinos que chegavam à cidade de São Paulo na década de cinqüenta e anos posteriores. Talvez fosse um pouco de preconceito. Hoje ser baiano está na moda.

Depois que nos alojamos no pequeno barraco de quatro cômodos, no fundo de um quintal, onde havia uma casa enorme na frente, apareceu uma das moradoras da rua e que tinha sua casa no lote do lado.

Era uma senhora com aproximadamente cinqüenta anos, meio obesa e trazia em suas mãos várias roupas e agasalhos que, segundo ela, tinham sido de seus filhos quando ainda eram pequenos e que poderia agasalhar-nos.

Minha mãe, meio sem jeito e até mesmo desconfiada, agradeceu e pegou as roupas e passou a distribuí-las entre os filhos de acordo com o tamanho de cada um.

Todos nossos conhecimentos e aprendizados precisavam ser reciclados, mesmo que nem mesmo soubéssemos que existia tal palavra. O mundo onde estávamos agora morando era completamente diferente daquele de onde vínhamos.

Dias depois, meu irmão, que já morava em São Paulo há algum tempo, levou os irmãos menores a uma escola que ficava ali perto, foi quando, pela primeira vez, tive contato real com as letras. No Nordeste, havia ido algumas vezes à escola, no entanto, ali era diferente, não havia a palmatória, tampouco o antiquado método de ensino. Ainda me lembro da recomendação do meu irmão:

- Se alguém chamar vocês de moleque, não se ofendam, é assim que chamam os meninos aqui.

Devido a nosso atraso e também ao adiantado do ano, apenas iríamos freqüentar a escola para iniciarmos nosso contato com outro pólo civilizatório. A escola era de uma dessas abnegadas pessoas que se dão em prol dos outros, em troca de nada.

Ainda me lembro que, devido a nossa timidez e pela educação que nos havia sido transmitida por nossos pais, em pouco tempo eu passei a ser o preferido da professora e sempre me dispunha a ajudá-la nas tarefas pós-aula e com isso sempre era presenteado com alguma fruta que os outros alunos lhe davam.

No dia em que eu consegui, pela primeira vez, entender o que viria a ser leitura, escrevi meu nome e o de meus pais.

Neste dia eu chorei de emoção.

Tempos depois, mudamos de residência, fomos para outra casa ali perto, porém bem maior que a primeira, que havia sido alugada as pressas.

Com nossa mudança e no início do ano de 1957, começamos a estudar numa escola municipal e quase sempre depois das aulas minha professora, uma senhora bastante idosa, levava-me para sua casa e ajudava-me de todas as maneiras no meu despertar.

São muito gratas, as lembranças de meus primeiros anos de São Paulo.

18-09-06- VEM-

Vanderleis Maia
Enviado por Vanderleis Maia em 13/11/2007
Reeditado em 15/08/2008
Código do texto: T735880