Sábado-feira: Um dia como outro qualquer
Quando a porta do elevador abriu no 5° andar de um prédio luxuoso em São Paulo, Marcelo e Rodrigo que estavam no corredor entraram rapidamente no elevador e apertaram o "T" de térreo para irem à quadra do condomínio. A conversa e o bom entendimento entre os dois garotos intrigava as pessoas. Marcelo apesar dos 14 anos, media 1,83 de altura, negro e de cabelo black, trazia consigo um sorriso largo que estava escondido debaixo da máscara que era obrigatória dentro do elevador. Marcelo era filho de Josi, empregada doméstica de Ana, mãe de Rodrigo, que era o contraste perfeito de Marcelo. Rodrigo media 1,55 de altura, um pouco acima do peso para sua idade, usava óculos e tinha um cabelo curto. Apesar das diferenças físicas e intelectuais, de colégios públicos e particulares, os dois tinham algo em comum, a paixão pelo basquete.
Era um sábado de manhã e o prédio estava lotado, tinha uma feira na rua de trás. Pessoas entrando e saindo do condomínio com sacolas de frutas, verduras, legumes, guardanapos cinza jogados na rua faziam parte do cenário, o cheiro ficava por conta dos pastéis e caldo de cana que perfumava o ar.
Os dois desceram no térreo e caminharam até o único portão de ferro que dava acesso à quadra poliesportiva do condomínio. Dentro da quadra e por não ser coberta, não era necessário o uso de máscara. A quadra era cercada por uma mureta de cimento de 1 metro de altura e continuava com uma grade de mais 3 metros de altura. A quadra estava vazia, perfeita para os dois que decidiram jogar do lado oposto ao portão de entrada e saída. Alguns minutos depois, porém, chegou companhia. Duas crianças de 7 e 9 anos começaram a brincar com uma bola de futebol no lado da quadra que estava livre. Os garotos não estavam só, suas mães estavam presentes, porém hoje em dia, nem sempre é possível dizer que alguém está realmente presente estando pessoalmente em algum lugar. A tecnologia possibilita presença em vários lugares ao mesmo tempo e o paradoxo de não estar conectado onde se está pessoalmente presente.
Elas apoiaram-se nas grades da quadra do lado de fora e olhavam os garotos, não seus filhos, mas Rodrigo e Marcelo que pareciam estar se divertindo jogando basquete, elas cochichavam entre si. A situação estava se tornando incômoda para Marcelo que percebia os olhares em sua direção. Não sabia ao certo se elas o observavam pelos seus perfeitos arremessos ou pelo seu cabelo. Rodrigo simplesmente sorria e respirava ofegante.
Rodrigo disse para Marcelo que precisava de uma pausa, iria subir em casa para pegar uma garrafa de água para os dois. Marcelo concordou e continuou com seus arremessos, se virou para ver Rodrigo cruzar o único portão da quadra e ver se as mulheres ainda o observavam, porém, as duas já estavam sentadas nos bancos e provavelmente em outros lugares, pois estavam com seus smartphones nas mãos. Devido sua altura, pela mureta da quadra e a distância do banco que elas estavam, Marcelo percebeu que as mães já não conseguiam ver seus filhos na quadra. Olhou para os garotos e viu que os dois estavam se divertindo, um chutava a bola e outro ficava no gol, defendendo. Reparou que o goleiro estava com um pirulito na boca, pensou em falar algo, olhou para as mães novamente e percebeu que elas estavam de fones de ouvidos, decidiu ficar quieto. Pequenas decisões que acontecem e desencadeiam uma desenfreada série de acontecimentos que podem alterar ou até encerrar uma história.
Depois de alguns arremessos ouviu um grito vindo dos garotos, correu em direção a eles e o que ele temia estava acontecendo. O pirulito havia entrado goela abaixo e um dos garotos estava com dificuldades para respirar. O outro garoto gritava desesperadamente, porém, sua mãe ou seja lá quem fosse não o escutava. Marcelo numa reação totalmente instintiva abraçou o garoto por trás e apertava a barriga do garoto tentando fazer com que ele cuspisse o pirulito. A percepção de tempo muda quando se entra num combate entre vida e morte. Como num jogo cada segundo se torna importante. O outro garoto saiu correndo da quadra gritando, o desespero começava a tomar conta da situação. O porteiro ao perceber que havia algo de errado se levantou e correu em direção a quadra para saber o que estava acontecendo, ao ver a cena de Marcelo, apertando o garoto por trás, não pensou duas vezes em pegar um rodo que ficava do lado de fora da quadra e bater na cabeça de Marcelo, que estava de costas para o portão, e não viu o porteiro se aproximar. O garoto que Marcelo tentava ajudar caiu e Marcelo também. Alguns moradores que também perceberam a gritaria correram em direção a quadra e ao verem o porteiro, José Carlos, 28 anos de profissão, há 12 trabalhava no condomínio, batendo no Marcelo o acompanharam, chutes e pontapés eram distribuídos gratuitamente num garoto indefeso. A ação da ignorância é a violência, e em certos momentos se torna um dos elos de conexão mais forte entre as pessoas. A fatalidade do garoto engasgado havia se tornado coadjuvante numa cena de racismo em tempos modernos. Somente depois de alguns momentos, eles perceberam que Marcelo e nem o garoto que ele segurava, Augusto, de 8 anos, não respiravam mais. Dois corpos com uma única coisa em comum, sem vida, as bolas, de basquete e de futebol estavam paradas, sem movimento. Augusto, provavelmente morreu engasgado, mas também sofreu indiretamente o racismo contra Marcelo, através da negligência e ignorância dos agressores. Procurar um culpado para uma fatalidade não é algo fácil, talvez seja por isso que a morte é a personificação de uma pessoa que vem buscar alguém. Fica mais fácil para dar um sentido racional a algo sentimental. Mas no caso de Marcelo, não parece fazer sentido, pode alguém nascer culpado por alguma característica física? Por alguma opção sexual, religiosa ou política? E se alguém for culpado? Quem está julgando?
Rodrigo se assustou ao sair do elevador com uma garrafa de água na mão e ver o saguão do hotel cheio de gente, o número de pessoas aumentava conforme ele caminhava em direção a quadra. Ao se aproximar da entrada, foi contido por um policial que o impediu de entrar na quadra, porém ele viu o cabelo de Marcelo saindo por debaixo do pano branco que cobria seu corpo. E da água que ele trazia em suas mãos, Marcelo não podia mais beber.