O garoto na calçada.

Dou uma pausa no serviço, desço para fumar um cigarro

e tirar um pouco do estresse,

peso este o qual eu nem deveria transportar.

O centro da cidade acordava com calor,

vinte e sete graus e ainda nem são nove da manhã...

Os comerciantes levantam suas portas (o som mais frequente nesse horário),

e eles conferem tudo, ajeitam a loja, limpam, e aguardam

na esperança de que o dia seja salvo, que haja lucro.

A rua se encontra ainda úmida do nevoeiro noturno,

e lixo para onde se virava o olhar,

e no meio dessa mesma calçada, um garoto

está deitado a se debater, extasiado, numa viagem

tão alucinante, ou poderia ser a sofrível abstinência,

sei que chega a assustar a todos,

despertando suas curiosidades, famintos pela desgraça alheia.

O efeito de uma substância, ou da falta dela, somente ele sabia...

Quem o avistava apenas deduzia, impiedosamente, eu diria.

As pessoas tão bem vestidas, orgulhosas, e domesticadas,

olhavam feio, metralhavam-no, repudiando-o,

vai ver, por não entenderem nada além

do que lhes fora imposto, do que lhes fora explicado,

não entendiam sequer suas próprias insanidades...

Ignoro tudo isso, fico na minha.

Lanço fogo no cigarro, a primeira tragada soa libertadora.

Recosto-me num poste de iluminação

de fronte a entrada da empresa, um poste com luminárias

antigas, clássica, um resquício preservado

do centro histórico de São Paulo.

A minha frente (e não somente): gigantes de pedras se apresentam,

prédios imponentes, e, olhando para além deles

eu consigo ver a lua em meio ao azul

resistindo a claridade do majestoso sol,

não avisto um pássaro sequer voando alto, os pombos só andam.

Voltando o foco para baixo, onde a sombra prevalece,

fica perceptível todo o contraste

e isso me incomoda ligeiramente, desencoraja

lidar sempre com a realidade...

As pessoas trafegam e se questionam sobre o garoto,

coisa que os incomoda profundamente,

devem dizer a elas mesmas que "aquilo não presta",

que jogou as oportunidades fora e se perdeu,

e me refiro assim pelas diversas expressões negativas.

Mas em certo momento o garoto se movimenta, se senta,

e penso que talvez tenha uns dezesseis anos, não mais.

Ele então se levanta com alguma dificuldade,

um tanto zonzo, fora de sintonia, fica reparando

no rosto de todos ao seu redor, denota indiferença,

como se desse de ombros, dá o primeiro passo, descalço.

Tento imaginar o que viria dali em diante,

mas me perco dentro das inúmeras possibilidades,

e tento ignorar por um segundo, porém, estava totalmente

tomado, entretido com aquela situação...

Os transeuntes desviam do garoto, assustados,

na mente deles, ele provavelmente tinha alguma praga,

ou ele mesmo era considerado uma?

Continuo aos tragos moderados do meu vício,

e aquele garoto chegava agora bem próximo de mim,

eu entendi antecipadamente qual era seu interesse, o óbvio.

Na minha frente, me encara com certa hostilidade

olhando nos olhos sem hesitar,

e eu faço o mesmo, não desvio, não sinto medo nem aversão

ou o nojo comum esboçado pelos demais;

não demonstro qualquer reação adversa.

Pede-me um cigarro com sua educação, um tanto afoito.

Tranquilamente, saco um do maço e lhe entrego.

Ele o coloca entre os lábios secos e faz um gesto, do isqueiro,

e eu mesmo acabo acendendo, uma velha cortesia.

Esse garoto me filma tentando compreender qual era a minha,

vai ver, porque reparou a ausência de perigo,

e também, a ausência de qualquer sinal de pena, disfarçada em boa ação.

Viu que eu só estava cedendo um cigarro a quem me pedia...

Em seguida, após obter o que queria, parece relevar.

Agradece rapidamente, sem fazer tanta questão, vira as costas

e se põe a caminhar no sentido do Largo do Paysandu.

Ninguém por perto se prendeu nessa cena, quem se atentaria?

Era o cotidiano, a normalidade, conviver com pedintes...

Meu cigarro acaba, atiro o filtro na lixeira,

logo estou no interior do elevador, andares acima, desanimado,

pesando sobre minhas escolhas furadas, meu fracasso.

Mais ou menos duas horas depois, arranjo outro espaço vago

e de imediato o cigarro me vêm em mente,

desço de novo, do décimo segundo piso, uso as escadas

para não ser tão repetitivo, o que não muda o bastante.

Avisto o que é habitual na saída, e o sol

já toma a calçada do lado oposto, e da rua,

num trecho onde os motoboys estacionam as motos.

As pessoas andam apressadamente, estamos quase no horário do almoço,

a lanchonete na esquina já funciona à mil, ouço

os sons provindos lá de dentro, e de parte do pessoal que se posta de fora.

Lanço fogo no cigarro e atravesso para o outro lado

a fim de sentir um bocado daquela energia. Lá

mais adiante, mais um corpo atirado no chão,

não sei se é homem ou se é mulher, mas está jogado no meio da calçada.

Sinto o mormaço quente daquele horário,

a qualidade do ar deve ser das mais prejudiciais, não sou exemplo

para comentar, fumando meus cigarros...

As pessoas continuam frenéticas, correndo incessantemente, continuam

se comportando igual, são valiosas, são desdenhosas,

não há novidade em um corpo imóvel, quem sabe, morto,

caído no chão em brasa de uma calçada do centro...

Alguns se disponibilizam a observar por um instante,

e aparentemente se comovem, mas só de passagem.

A maioria, pelo contrário, apenas segue contando um e dois, enrijecidos

feito soldados programados, alienados, repletos de missões à cumprir.

Insensíveis.

Começo a me lembrar do garoto de outrora,

e me pergunto, inutilmente, qual seria o seu sonho?

Se é que algum prevalece nessas circunstâncias...

Não é da minha conta, não me diz respeito, mas

fico me perguntando quais as opções que ele tinha para o dia?

Por o que ele tem esperado?

Enquanto queimo o meu cigarro.

[dsouza]

DeynoD
Enviado por DeynoD em 16/06/2021
Código do texto: T7279799
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