Café no centro
A noite fria e chuvosa praticamente o obrigou a entrar naquele café do centro. Molhado, com frio, cansado e triste, pediu um cappuccino e foi se sentar em uma mesa num canto. O dia tinha sido péssimo.
Não passara na entrevista de emprego pela manhã, perdera o primeiro ônibus para a faculdade, se atrasara para a prova, e obviamente esquecera o guarda-chuva. O celular mal tinha 3% de bateria, não teria nem como pedir um uber, o jeito era esperar a chuva passar e enfrentar o metrô assim que a chuva diminuísse o suficiente para seguir até lá.
Tomou a liberdade de olhar em volta. Apesar de o lugar estar bem cheio, uma garota em especifico lhe chamou a atenção. Baixa, pele clara, cabelos pretos, ondulados e volumosos ligeiramente bagunçados pelo vento chuvoso e uma expressão concentrada voltada para uma tela brilhosa.
Por um instante ela levantou os olhos do notebook e encontrou os dele. Seria um sorriso? - pensou ele. - Não, não podia ser. Garotas bonitas não sorriam em cafés para caras como ele.
Assim que ela voltou a encarar a tela do computador, ele a olhou mais uma vez.
Seus olhos tinham uma cor diferente, algo entre o verde e o castanho, um toque cinzento, um certo mistério que ele não sabia explicar. Talvez fosse aquilo que despertasse sua atenção.
Passou a imaginar o que ela estaria fazendo. Parecia concentrada. Estaria lendo? Ela tinha cara de quem gostava de um bom livro. Olhou com mais atenção e notou que os dedos também se mexiam com bastante agilidade.
Hum, escritora. - pensou ele. - Mas os olhos não pareciam contemplativos, nem fixos, percorriam toda a tela, indo e vindo velozes.
Estaria jogando? Um daqueles jogos que os nerds da faculdade sempre jogaram. Uma garota bonita assim?! Ficou surpreso, talvez impressionado.
Focou-se nas expressões do rosto dela. Tentou invadir sua mente. Começou a imaginar o que ela fazia nas horas vagas. (Mais uma vez se perguntava porque tinha essa estranha mania de ficar analisando desconhecidos)?
Os ombros ligeiramente indicavam certa timidez, mas a expressão no rosto dela exalava confiança. Uma mulher de opinião forte, mas sem tanta habilidade social, talvez?
Tomou mais um gole do cappuccino e pegou um livro na mochila, a chuva não passaria tão cedo e não podia passar a noite toda com os olhos vidrados em uma desconhecida. Além de perturbador, era também patético demais.
Leu uma, duas, três páginas, mas a cada novo parágrafo levantava os olhos na direção da garota sem nem ao menos perceber o que estava fazendo.
Ela levava a bebida aos lábios sem tirar os olhos da tela.
Ele reconheceu um "M" escrito no copo. Marcela, Michele, Monica, Milena, qual seria o nome dela?
Leu mais uma página inteira, mal prestando atenção nas palavras, e antes de virar para a próxima, olhou-a mais uma vez.
Os olhos dela não estavam mais no computador. Por um instante pareceu que ela o olhava diretamente nos olhos, tentava ler seus pensamentos, assim como ele mesmo tentava fazer, e dessa vez não deixou duvidas, sorriu abertamente. Nenhuma garota costumava sorrir para ele.
Sorriu timidamente de volta, conferiu discretamente se derrubara algo na camisa (só podia ser esse o motivo do sorriso) e voltou a atenção para o livro, mas só por curiosidade olhou-a mais uma vez.
Ela ainda olhava para ele, e mesmo com o copo na boca, ainda era possível ver seu sorriso.
Ele se escondeu atrás do livro, ligeiramente envergonhado. Estaria ela brincando com ele ao perceber que era observada? Não. Parecia um sorriso sincero, pelo menos é o que achava. Por um momento seus pensamentos correram para um lugar longínquo.
Um parque com os dois sentados, cabeças coladas, olhando as nuvens; roupas de gala em um restaurante chique rindo um do outro com uma taça de vinho nas mãos; uma praia com eles correndo e se abraçando ao entrar no mar, um biquíni preto que valorizava curvas que ele não era capaz de ver com as roupas que ela usava nesse dia frio, mas era totalmente capaz de imaginar...
A imagem que tomou conta de sua mente logo em seguida não era nem mesmo de um biquíni em uma praia, mas um corpo nu, macio e quente em seus braços numa bela cama, macia e confortável.
Ousou olhar para ela mais uma vez.
Seus olhos se cruzaram diretamente, e ele teve certeza de que ela soube exatamente o que se passava na cabeça dele naquele momento. Sentiu-se imensamente constrangido com isso. Não era o tipo de coisa que se orgulhava de pensar vendo uma desconhecida. Enrubesceu.
Balançou a cabeça como se quisesse espantar aqueles pensamentos. Ela riu e mexeu nos cabelos, passou a língua vagarosamente nos lábios e manteve os olhos grudados nele, piscando com uma lentidão maior que a normal.
Repentinamente ele se sentiu assustado.
Não costumam sorrir para ele, que dirá flertar abertamente. A primeira reação foi se esconder novamente atrás do livro. Com certeza a garota resolvera tirar sarro do estranho pervertido que a olhava.
Tomou o cappuccino com certa pressa, derramando um pouco no próprio queixo e tentou ler o máximo de páginas que pode sem olhar para cima. Já sentia o rubor consumir-lhe todo o rosto.
Nada do que leu parecia fazer sentido. As letras não tinham significado em sua cabeça. Na verdade só três palavras se formavam em sua mente. "Fale com ela".
A imagem do rosto de menina jogando o cabelo para trás, sorrindo e lambendo os lábios tomou conta dele. Fechou os olhos por um instante e foi capaz de imagina-la em seus braços ali mesmo naquele café.
Arriscou um novo olhar. Ela agora mexia no celular e colocava fones nos ouvidos. Deixara de dar bola para ele, aparentemente.
"Eu estava certo. Não passa de uma brincadeira. Esse é um claro sinal de que ela não quer ser incomodada”, mas aquele sorriso...
Percebeu que a olhava de forma abobada, seus olhos se cruzaram novamente, como num golpe do acaso, nenhum sorriso agora, mas por um instante ela tirou o fone e o olhou, esperando que dissesse alguma coisa. Não parecia mais brincar.
Naquela fração de segundo muitas coisas passara em sua cabeça. Abriu a boca como se quisesse dizer algo, mas nenhum som saiu. Estava longe demais, não podia gritar em meio ao café. Mas as próprias pernas também pareciam não responder.
Fechou os olhos, respirou profundamente e tomado por uma coragem que nem sabia de onde vinha fechou o livro e o guardou na mochila. Olhou novamente na direção da garota e notou que seu café terminara. Ela agora guardava o computador na bolsa.
Perdeu a coragem no mesmo instante e murchou sobre a mesa.
Ela já se levantara, celular no bolso, fone nos ouvidos. Pegou a bolsa e se dirigiu para a porta.
Paralisado, ele a viu passar por entre os demais clientes e sem forças, permaneceu sentado.
Acaso, obra do destino, não soube explicar, mas quando olhou para o lugar vazio, viu um guarda chuva colorido deixado ao pé da mesa.
A coragem o preencheu novamente.
Levantou rápido como um raio, colocou a mochila nas costas e foi até lá.
Assim que pegou o guarda chuva nas mãos e se virou em direção à porta, viu a garota de cabelo ondulado entrar, olhando diretamente para ele, vendo o guarda chuva em suas mãos. Ele arregalou os olhos e sorriu. Ela sorriu de volta, tirou o fone do ouvido e foi até ele.
- Acho que isso é meu. - Disse ela apontando para o guarda chuva.
Ele demorou um segundo para reagir, boquiaberto. As palavras lhe faltaram (aquela voz era mais doce do que imaginava)
- É, é sim. Você o esqueceu, e eu ia levar ele para você.
A garota sorriu mais uma vez e agradeceu, esticou a mão para pegar o guarda chuva, mas o rapaz ainda tímido demorou a entender o gesto, e meio sem jeito esticou a mão para devolvê-lo.
Por um instante os dedos se tocaram. A pele fria dos dedos da garota contrastou com a mão quente do rapaz, uma corrente elétrica pareceu percorrê-los.
- Obrigada. - Disse ela, corando de leve.
- Não por isso. – respondeu ele, sem conseguir manter o olhar em seus olhos.
E depois de um momento de silencio e espera sem que nenhuma palavra fosse dita, a garota virou novamente as costas em direção à saída, parecendo decepcionada.
No segundo passo ele avançou e tocou seu ombro.
- Espera. Eu... - novamente as palavras lhe faltaram, mas um assomo de criatividade terminou a frase por ele.
- Eu estou sem guarda chuva, será que você podia me dar uma carona no seu até o metrô?
Ela sorriu mais uma vez (que belo sorriso ela tinha).
Balançou a cabeça positivamente e saiu com ele do café, assim que seus pés tocaram a calçada, ela abriu o guarda chuva, deu o braço para o desconhecido e, sorridente, puxou uma animada conversa com ele.