Débora e Alice

O gramado tão verde estendia-se até às árvores verdejantes, de um verde mais escuro, num tapete convidativo e fresco, e mais adiante estendiam-se os ipês, abricós, mangueiras e até palmeiras, e tudo aquilo era o quintal do colégio.
Por ali passava Débora com certa pressa, pois tivera a impressão de avistar Gilson a alguma distância, mas logo a vegetação o ocultou.
A pressa de Débora era tanta que, ao rodear uma árvore, não reparou na menina sentada junto ao tronco e tropeçou nela, soltando um grito.
Esparramada no chão, sentiu que a ajudavam a se recompor.
- Você está bem?
- Caí de cara no chão. Como posso estar bem? Me sujei toda!
Olhou para a outra.
- O que você faz aqui?
- Eu estava lendo esse livro, Débora. Sempre faço isso.
Débora se ergueu, sacudiu a saia e as mangas e exclamou, irritada:
- Você é uma armadilha ambulante, Alice! Com licença que eu estou com pressa!
-Desculpe, mas isso nunca aconteceu antes...
Débora não quis ouvir mais nada, pois o acidente a atrasara, e saiu correndo.
Alice. Em outros tempos elas haviam sido mais amigas. Por que se haviam afastado?
Tudo começara naquela fatídica festa na escola. A mãe de Débora, Júlia, estava presente. Débora apresentou Alice, inocentemente. Quando puderam estar a sós, Júlia dissera à filha:
- Você não devia ficar andando com uma negra.
- Ué, mamãe, qual é o problema?
- E você não vê? Não fica bem!
- Mas... puxa, a Alice é tão bonitinha!
- E daí? Ela pode ser bonita como preta! Você é uma menina de boa família, não deve se juntar com ela, pega mal!
Débora nunca se incomodara com a cor de Alice, mas não estava acostumada a contrariar a mãe dominadora. Ainda tentou argumentar:
- Mas mãe, tem tanto colega negro!
- O que se há de fazer? Convive, mas evita intimidade! E essa aí você não chama lá para casa!
Débora até sabia que a mãe era racista, mas não se ligara que era tanto.
Nos dias que se seguiram Débora viu-se afastando-se gradativamente de Alice. Não havia motivo algum, mas surgira como que uma barreira entre as duas. Sempre que falava com Alice, Débora lembrava que a sua colega era preta e que sua mãe não gostava de gente preta. Além disso de vez em quando Júlia indagava: "Você ainda está se dando com aquela negrinha?"
Débora tentava desconversar: "A gente se fala às vezes..."; "Fale o menos possível com ela! Não fica bem ter amizade com gente preta!"
E com o tempo Débora passou a ver em Alice defeitos que antes não enxergava. E nesse interim ligou-se de amizade com Fabiana, e começara a namorar o Gilson, aquele colega esperto e com olhar de elfo... assim ela achava.
Gostava da companhia de Fabiana, iam juntas ao cinema e Júlia apreciava aquela sua nova amiga. Até o pai, em geral tão indiferente, gostara de Fabiana quando esta aparecera por lá, levada por Débora.
Afinal Fabiana era bonita, de belos cabelos negros, voz musical, inteligente e espirituosa.
Por que Débora se lembrava dessas coisas naquela hora? Já se afastara quase ao limite do parque, e não achara Gilson. Ora, onde se metera o namorado? Deveria estar procurando por ela também!
Então, ao ultrapassar umas árvores copadas e de troncos espessos, ela enxergou...
Fabiana e Gilson, aos amassos.
Foi um grande choque para Débora e aparentemente também para Gilson e Fabiana. Flagrados, porém, não tinham como negar ou disfarçar e, por alguns terríveis momentos, Débora trocou com ambos olhares cortantes. No entanto sentia-se mais incomodada que eles, sentia vontade de sair de lá correndo ou entrar pelo chão adentro.
Afinal foi Fabiana quem rompeu o silêncio que só era interrompido pelo trinado de sábias e tico-ticos.
- O que você quer, Débora? - e havia um sorriso sarcástico em sua boca.
- O que... o que eu quero? Eu estava à procura do meu namorado, e agora... o que significa isso?
- Fabiana...- começou Gilson, meio incomodado.
- Deixa comigo, não precisa  você se meter.
Fabiana desprendeu-se do rapaz e deu vários passos, pondo-se frente à frente com Débora.
- Você iria saber, é claro, mas não precisava ser tão cedo.
- Cedo? Você quer dizer... quando isso começou?
- Ah, já tem algum tempo.
- Mas então isso é sério?
- Débora, não seja tola! Não era para você ver mas se viu, viu!
- Como pode dizer isso para mim? Como é que a minha melhor amiga... e meu namorado... fazem uma safadeza dessas comigo?
- Débora, por favor... - começou Gilson, mas Fabiana, irritada, o interrompeu com gesto imperioso e respondeu a Débora:
- Você vai partir para os insultos então? Quem lhe disse que nós somos as melhores amigas? E em que mundo você vive afinal? Não sabe que este é um mundo de competição?
- Não, eu não sei! - e agora Débora estava indignada. - Não sabia que vocês dois eram assim!
- Assim como, Débora? Agora você vai me dizer!
- Assim... baixos... traíras...
- Chega! Não quero ouvir mais nada! Não gosto de gente que banca santinha...
- Do que está falando?
Fabiana aproximou-se perigosamente de Débora que, por demais revoltada, não se prevenira.
- Eu me enganei com você, Fabiana! Pensei que você prestava, e...
A outra deu-lhe um forte empurrão e Débora viu-se caída sentada no capim.
Gilson segurou o braço de Fabiana:
- Chega, Fabby, vamos embora. Senão vamos ter problema com a disciplina.
- É, vamos. Deixa ela aí.
Débora, de tão estarrecida, não pensava em reagir e agora chorava.
- Chora, filhinha, teu leite derramado -.e assim dizendo Fabiana se afastou, de braço dado com Gilson.
Débora estava ainda tentando enxugar as lágrimas quando escutou passos se aproximando e olhou para cima, alarmada.
Alice.
- Débora...
- Alice, eu tropecei...
Alice acocorou-se junto a ela.
- Débora, eu vi tudo, eu sei o que aconteceu.
- Você...
- Minha amiga. Minha pobre e querida amiga.
Ela abraçou Débora com calor. Após uma hesitação inicial Débora correspondeu ao abraço, com veemência.
- Alice...
- Já está quase na hora de voltarmos para a aula, Debby. Recomponha-se, enxugue as lágrimas e não deixe aqueles dois patifes acharem que você está arrasada. Aliás não fique arrasada. Há pessoas melhores que eles no mundo...
- Oh, Alice...
Num impulso Débora beijou a amiga e exclamou:
- Alice, me perdoa, Alice!
- Perdoar o que?
- Eu também fui infiel com você, eu me afastei de você...
- Sempre fui sua amiga, Débora, e sempre serei.
- Eu mereci o que se passou. Nem posso ficar com raiva deles.
- Levante-se.
Alice ajudou-a a levantar. Débora pôs as mãos em seus ombros.
- Alice, se você deixar seremos amigas inseparáveis de agora em diante.
Alice sorriu com sinceridade. 
- E por que não? Adoro a sua amizade, Débora. Mas vamos antes que toque o sino.
Caminharam de mãos dadas em terreno irregular, onde havia até espinheiros. Intimamente Débora lembrou-se que, para manter a amizade com Alice, teria de enfrentar a oposição da mãe.
E estava disposta a fazê-lo.

Rio de Janeiro, 1 de janeiro a 18 de fevereiro de 2021.


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