Martina

Manollo estava feliz, assoviava, cantava e ensaiava passos de dança, era hoje o dia. Finalmente tinha arquitetado um plano infalível para ficar a sós com Martina. Desde que viera morar com a família neste lugar a mais ou menos uns quatro anos estava de olho nela. Mas ela nunca ficava sozinha em casa, sempre tinha alguém por perto. Hoje era diferente, com ajuda de dois amigos o caminho estaria livre por algumas horas,e para facilitar as coisas, a esposa e as crianças sairam cedinho junto com os filhos de Martina em uma viagem da escola e voltariam quase de noite.. Banho tomado, barba feita no capricho, cabelo bem penteado, vestiu sua bombacha preta e nos pés alpargata de corda que comprara na Argentina, para pisar macio perto dela. Nem vestiria a camisa que estava em cima da cama, assim mostraria seus músculos e não precisaria perder tempo tirando, já que o tempo seria curto. Manollo você é muito esperto, pensou ele. Olhou-se no espelho e sorriu de puro gosto, ela não resistiria seu charme e cairia em seus braços. Afinal ele era um gaúcho bonito. O chinaredo da fronteira brigava para ver quem ficava com ele nas noitadas. Era um Dom Juan das redondezas. Mas agora só pensava em Martina. Tinha um pequeno problema ela era casada, mas ele também, então estava tudo equilibrado. Para completar o visual, usou uma gota de um perfume almiscarado que o primo trouxe da Espanha, agora sim estava pronto para uma luita de amor.

Saiu assoviando baixinho, antes pegou algumas ferramentas para devolver a Vicente marido de Martina, era a desculpa para entrar na casa. A tarde ensolarada fazia tudo ficar mais bonito, andou os cinquenta metros até seu destino parecendo flutuar, ao longe dava pra ver o rio Uruguai correndo tranquilo e refletindo o céu azul.

Chegou ao portão e antes de abrir olhou de soslaio para a casa da frente e fez um sinal de positivo dissimulado para o vizinho cúmplice que estava encarregado de vigiar e dar o alarme caso algo saísse errado.

O portão como de costume só estava encostado, pois ali era um bairro muito tranquilo, quase rural. Andou pelo jardim até a porta dos fundos, afinal ele era de casa, o melhor amigo da família, tinha acesso livre. A porta estava aberta e na sala de jantar modesta, Martina estava debruçada sobre livros e cadernos, em frente de um computador, fazia um trabalho de sua faculdade.

Ele bateu de leve na parede para chamar atenção da moça, ela levantou os olhos, demorando um pouco para se desligar do que fazia. Sorriu pra ele com tanta simpatia e confiança, que ele por instantes ficou sem fala, ela realmente mexia com seu psicológico pensou.

¬- Buenas tardes Martina. Falou suave com seu melhor sorriso.

Ela levantou e saiu do lugar que estava enquanto respondia.

- Boa tarde Manollo. Tudo bem com você?

- Mui bien. Respondeu, gostava de falar um pouco em castelhano, dizia que fazia parte do seu charme, afinal vivera sempre na fronteira que não faz fronteira, Brasil e Argentina, os dois idiomas lhe eram familiares.

- Vicente se encontra? Perguntou já sabendo a resposta. Vim devolver as ferramentas que ele me emprestou.

- Vicente foi levar Ramiro até o Pronto Socorro, pois ele chegou aqui dizendo que não estava se sentindo bem, parecia sufocado. Respondeu Martina.

Tudo certo conforme o combinado, pensou Manollo.

Martina pegou uma chave na estante e dirigiu-se a porta para abrir o galpão das ferramentas. Passou por Manollo e roçou sem querer seu vestido rodado, estampado de pequenas fores vermelhas e azuis na bombacha dele.

Manollo saiu andando atrás dela, espichava o pescoço para poder sentir o perfume que desprendia dos cabelos longos e castanhos escuros.

Guardadas as ferramentas, voltaram a casa devagar pelo caminho circundado de flores e muito verde. Quando chegaram a porta, o telefone tocou, Martina correu para atender, era Vicente. Enquanto ela falava com o esposo, Manollo acariciava o gato siamês Ronronito que cochilava em uma cadeira, mas sem tirar os olhos da mulher. Pensava como ela estava bonita e charmosa mesmo com toda simplicidade, não era o vestir, era o ser naturalmente bela.

- Vicente avisando que vai demorar um pouco, pois Ramiro ainda não foi atendido. E depois da consulta Vicente vai levar ele em casa, pois parece meio zonzo. Martina informou depois de desligar o telefone.

Manollo sorriu de orelha a orelha, então Ramiro estava fazendo tudo direitinho, tinha que dar mais uma gorjeta quando o encontrasse de novo. Agora já podia fazer o que pretendia, teria um bom tempo. Mal conseguia esperar para por as mãos nela. Depois que ela estivesse em seus braços se garantia. Não queria ser brusco e assustá-la. Mas como começar?

Martina se deu conta que Manollo estava parado sem camisa, olhando pra ela com um jeito diferente, sentiu-se incomodada de repente, pois ele já deveria ter ido embora.

- Você precisa de mais alguma coisa Manollo?

E ele prontamente respondeu com a voz carregada de desejo:

- Preciso de você mi amor. E deu um passo em direção a ela, visivelmente excitado.

Martina riu, uma sonora gargalhada de puro nervoso. Que foi interpretada por ele como um sim. Manollo se aproximou mais, era agora que ia começar a brincadeira.

Martina viu que seria agarrada e se isso acontecesse não teria como se livrar, pois ele era bem forte. Precisava pensar rápido, já sentia o perfume e a respiração dele.

Deu um jogo de corpo e se afastou rapidamente agarrando a mesa e arrastando formando uma espécie de trincheira entre os dois e derrubando as cadeiras todas. O gato Ronronito que dormia na cadeira levou um baita susto, deu um miado e se abrigou embaixo do fogão a lenha, todo arrepiado.

Manollo agora mais afoito que nunca, se preparava para nova investida. De relance viu a porta do quarto do casal entreaberta atrás de Martina. A estratégia agora era puxar a mesa, agarrar Martina e ir com ela nos braços até o quarto e fazer amor na cama onde dormia com o marido. Abaixou-se rapidamente para erguer as cadeiras que estavam caídas atrapalhando a passagem e afastar a mesa. Quando estava endireitando o corpo ouviu um ruído metálico onde a mulher estava, um ziiimm. Ergueu-se rapidamente.

Martina puxava um facão de trás de um móvel e se colocava em posição de ataque.

- Se der mais um passo, te corto. Martina falou com uma voz e um olhar que não deixava duvida, seus olhos cor de âmbar estavam com uma tonalidade dourada e fria.

Manollo ficou espantado com a reviravolta, de repente toda sua excitação murchou a olhos vistos.

Naquele instante finalmente percebeu que tinha perdido a parada. Que Martina não o queria e ele estava fazendo um feio papel de abusador. Tentou falar com ela, se desculpar.

- Martina querida me desculpe, sou louco por você. Gaguejou.

-Saia daqui agora seu senverguenza. Saia desta casa. Ela falou erguendo o facão que reluziu com a claridade que vinha da janela.

Ele virou as costas para sair lentamente, ainda balbuciando palavras de falso arrependimento. Tentando remendar a situação.

Martina impaciente e com receio de nova investida, deu uma batida com o facão na chapa de ferro do fogão a lenha, provocando um estouro assustador que fez Manollo ir até a porta em um pulo. Ronronito que estava embaixo do fogão pensando estar protegido, apavorou-se com o barulho e deu um prisco indo parar na porta junto com Manollo se enredando nas bombachas do homem, arranhando e mordendo suas pernas e braços com miados estridentes tentando se libertar do enrosco. Manollo se desequilibrou e quase caiu na tentativa de se livrar do gato enlouquecido, quando conseguiu estava todo arranhado e sem um pé da alpargata, nem pensou em procurar, andando rapidamente em direção à saída. Mas nem precisava se preocupar com isso, pois quando chegou ao portão o pé da alpargata passou zunindo sobre sua cabeça, indo parar na rua antes dele. Martina vinha em seu encalço com o facão em punho e deu um chute certeiro fazendo a alpargata voar portão a fora.

Quando Manollo já estava na rua, Martina aproximou-se rapidamente para trancar o portão e a tempo de ver o vizinho alcoviteiro abrir os braços como a perguntar o que ouve e Manollo fez um sinal de negativo com o polegar como resposta. Martina bateu o portão com força chamando a atenção do vizinho e já que ele gostava de gestos, também fez o seu pra ele, ergueu o braço sacudindo o facão e ergueu o outro braço em direção a ele com a mão fechada e o dedo do meio em riste. Ela não gostava de bagacerismos e gestos obscenos, mas ele mereceu, estava de conluio com Manollo.

Martina trancou bem o portão e foi em busca de Ronronito pelo jardim, pois precisava acalmar o bichano para que quando os meninos voltassem do passeio pudessem brincar com ele sem perigo. Encontrou-o embaixo de algumas tabuas ainda ouriçado e o chamou com voz suave:

-Psss, psss, psss vem aqui gatinho, o perigo já passou. Ele veio meio receoso e a seguiu para dentro da casa.

Assim que entrou, Martina trancou a porta pensando que era triste ter que se proteger não de bandidos, mas dos amigos e vizinhos.

Precisava organizar a bagunça e tomar um banho, pois estava com o vestido e cabelos grudados no corpo suado. Queria estar bonita e com a casa em ordem para quando a família chegasse.

Arrumou tudo rapidamente e correu para o banho. Guardou o facão no lugar que só ela e Vicente sabiam.

Quando entrou no banheiro encarou seu rosto no espelho, uma expressão pesada, olhar ainda faiscante e cabelos em desalinho denunciava o susto. Despiu-se e ligou o chuveiro sentindo em seu corpo água morna, lavou os cabelos, esfregou-se com o sabonete cheiroso relaxando um pouco. Tentava ficar calma e pensar o que iria fazer depois.

Enquanto pensava no que aconteceu seus olhos teimavam em se encher de lágrimas, mas ela não queria chorar, pois ficaria com os olhos inchados e então seria difícil esconder de seus familiares que algo havia acontecido.

Depois de refletir um pouco sobre o ocorrido, decidira não contar sobre a tentativa de abuso que sofrera. As consequências seriam graves para todos. Seu esposo era tranquilo, mas com certeza iria tirar satisfação com Manollo. As crianças das duas famílias não poderiam mais brincar juntos. Ela e Selanira, mulher de Manollo, ficariam de mal. As pessoas iriam criticar, julgar e a culpa recairia sobre ela. Seria violentada por um bom tempo na mente e nas conversas maldosas das pessoas, até mesmo em seu trabalho. Também não acreditariam que ele não consumou o ato. Tinha visto muitas mulheres passarem por isso. Então era melhor calar. Sabia que Manollo também não falaria nada.

Depois do banho, escolheu um vestido azul com desenhos geométricos, vestiu-se rapidamente, secou os cabelos e fez uma trança. Tornou a se olhar no espelho e viu um semblante mais calmo. Suspirou profundamente, o coração ainda estava um pouco acelerado e as mãos trêmulas.

Manollo por sua vez, chegou em casa descabelado, com o corpo e o orgulho de macho aranhados. Desmoralizado. Os braços e pernas ardiam, tirou a bombacha para ver o estrago, alguns filetes de sangue escorriam pelos arranhões.

- Gato desgraciado. E agora como vou explicar para Selanira, pensava ele em voz alta.

Pensava também em Martina com um misto de raiva, espanto e desejo. A imagem dela de facão em punho não saia de sua cabeça.

- Ala pucha a muchacha é braba, exclamava.

Foi em busca de seu litro de cachaça com mentruz, que segundo seu avô era bom para curar machucados em geral internos e externos. Tomou um talagaço e em seguida despejou cuidadosamente um pouco nos ferimentos que arderam bastante, fazendo que pulasse só de cueca pelo quarto.

A cachaça lhe acalmou um pouco, tomou mais um trago e.... pimba, teve uma ideia. Ia pescar. Afobado juntou seus apetrechos de pesca e o litro de cana, enfiou em uma velha mochila, vestiu uma calça e camisa, botas e boina, em minutos estava preparado para pescaria. Teria a desculpa perfeita para os arranhões, voltaria tarde da noite e diria que se meteu pelos caraguatás em busca de peixes grandes. Também poderia pensar em paz, pois não entendia por que Martina não o queria. Precisava preparar novos planos, pois não desistiria assim tão fácil de Martina. Mas, se ela resolvesse contar para Vicente ele ia ter problemas. Talvez precisasse passar uns tempos fora da cidade, até baixar a poeira. Mas algo lhe dizia que ela não contaria nada para o marido.

Manollo consultou o relógio, precisava apressar-se, Selanira e as crianças chegariam logo. Correu até o galpão pegou sua velha motocicleta que usava para pescarias e caçadas carregou suas coisas e saiu roncando grosso e fumaceando a caminho das barrancas do rio Uruguai.

Martina pensou em voltar aos seus trabalhos e livros, mas sabia que não conseguiria se concentrar. Preparou um chimarrão com erva mate verdinha e cheirosa, já nos primeiros goles se sentiu reanimada, logo Vicente chegaria para matear com ela.

Com a cuia na mão e Ronronito se esfregando em suas pernas foi até a varanda olhar o rio. O sol já tinha baixado muito se preparando para o ocaso, tingindo de vermelho e laranja seu amado rio Uruguai, pássaros passavam em bandos em busca de abrigo para noite que se aproximava. Ela ficou ali fitando em silencio a linda paisagem, era de perder o fôlego com tanta beleza.

Ao longe ouviu a algazarra das crianças que chegavam e correu abrir o portão com um sorriso. Nada em seu semblante deixava transparecer os acontecimentos da tarde.