A velha e os lobos
Para a velha, lobo uivava sempre quando algo ruim ia acontecer. Naquela noite, advertiu a filha e a neta, elas já com o pé na rua:
- Cês vão mesmo? Toma cuidado, escuta os mais velhos. E escuta a ventania. Os lobos hoje tão soltos na serra. Escuta os uivos. E tá relampiano por todo canto.
A mulher pegou a conta de luz, botou no sutiã, olhou para a velha, balançou a cabeça, estalou a língua três vezes – mamãe tá caducando, não tem mais conserto - e disse para a filha, decidida:
- Chega de conversa. Se você não vem, vou sozinha. Aquilo acaba ... E vai ser hoje.
A filha não teve escolha, foi atrás. Não deixaria a mãe ir sozinha, de noite, chuva anunciando... e para um lugar desconhecido. Sabe-se lá com quem iam encontrar naquela casa, as ruas eram muito mal iluminadas e abrigavam muito cachorro sem dono.
- Uuuuuuuuuuuuuu
O lobo uivou de novo, se afinava com o vento. A avó imitou, vocês escutaram? Estava avisando algum perigo. A velha levantou os olhos como se pudesse ver nas trevas e disse para as duas terem cuidado, a noite estava muito escura e podia chover. Pela sua cabeça passou a imagem da suçuarana alumiando no cerrado, quando era menina e buscava lenha no mato. Nunca mais tinha visto bichos como aquela onça, mas que os lobos se escondem na serra ... ah, isso sim. Prova é que estão uivando, escuta - e fazia concha com as mãos no ouvido.
A partir daí, não hesitaram mais. Deixaram a velha falando sozinha, ela parece não queria o confronto. Subiram algumas ladeiras, saíram do centro, cada vez menos luz nas ruas, dobraram esquinas, relâmpagos riscavam o céu, começaram a aparecer as ruas descalças e, pelo menos na cabeça da velha, os lobos seguiam uivando, estavam por todos os lados:
- Uuuuuuuuuuu
Chegaram ao destino. O carro preto estava parado debaixo de uma árvore bem copada, buscando sigilo, longe do endereço da conta de luz. No único poste da rua, na esquina, a lâmpada mais parecia um tomate maduro.
Foi entrarem na rua e os cães vadios, alvoroçados pelas visitas inesperadas, saíram de todos os lados, defesa de território. Talvez fossem lobos, um esquadrão avançado. A filha assusta-se, os cães ladram ameaçadoramente, ela corre para o carro e abre o porta-malas – sabia que ficava aberto o tempo todo - apavorada com os cachorros. Miúda, consegue entrar e pula para o sossego. Raciocínio rápido, abre imediatamente a porta do motorista para a mãe. Bem escolada era.
Os cães ladram, andam em volta do carro, os lobos respondem, os relâmpagos continuam, a chuva não vem, esfria um pouco, o tempo passa. As duas, encolhidas lá dentro, à espera do homem.
Daí a pouco, ele sai do endereço da conta de luz. Evita umas poças d'água e observa mangas verdes caídas no chão, foi o vento. Vem brincando com a chave do carro e se assusta com o encontro inesperado, ela sentada no banco do passageiro, a filha atrás.
- Ah!!! Que isso? Que cês tão fazeno aqui?
- Cachorro, finalmente... mentiroso!!!! Acabou a palhaçada. Amanhã a gente começa a ver a papelada do divórcio.
Ele não tugiu nem mugiu. Esperou as duas se ajeitarem, ligou o carro e, em pensamento, rememorou os vários anos dessa relação paralela. Suspirou aliviado, no fundo sempre esperara que a solução viesse de fora. Ele não teria nunca coragem para romper aqueles laços. Alguém tinha de tomar a iniciativa, ainda bem.
No caminho de casa, começou a chover, água calma, tranquila, conformada. Já não se ouviam os lobos, apenas trovões distantes. A mulher a seu lado soluçava baixinho, o homem se ocupava da direção, mas podia imaginar as lágrimas descendo mansas daqueles olhos azuis lindíssimos.