O vento do inverno roçava indiferente os cabelos esbranquiçados daquela mendiga, que ninguém naquele bairro sabia o nome.

 
Roupas de trouxas, bem coloridas, mãos ásperas e unhas grandes e sujas, rosto com frestas salientes, como tivessem sidas marcadas por algum objeto cortante.

 
Aquela mendiga sempre vazava as manhãs e ganhava às ruas a procura de entulhos.
 

Tinha um companheiro que também mendigava e que não a largava. Ela, como toda mulher, gostava de se enfeitar antes de sair do barracão onde moravam, sempre usando um pano na cabeça colorido e um grosso que se estendia até os pés. além de uma bolsa, onde colocava o que encontrava e o que achava útil.


Os dois, andando, meio trôpegos, pelas ruas, mais pareciam um painel colorido, tamanha a diversidade  de cores que usavam em suas roupas.

 
Os dois antes não se conheciam e começaram a andar juntos, Dada a afinidade, ele passou a dormir com ela num barracão estorricado.



Sob chuva ou sol, lá estavam sempre juntos, aafubdar as mãos em  toda espécie de lixo e, de lá, pareciam tirar preciosidades.



Pedintes de mãos cheias, sempre conseguiam uma mão bondosa que lhes dessem café, ou nos fundos da igreja onde comiam as sobras do café . Ele, sempre dava um jeito esperto de coalhar seu café com três dedos de aguardente, sob os olhares severos de sua companheira que já sabia o que ia acontecer: de tanto bebericar, até ao meio-dia, ele estaria arriado numa cama.

Era o fim do expediente.


Mendigos de primeira, todos da rua os conheciam e os ajudavam, fosse na padaria, no armazém ou nas casas ou na igreja, sempre tinha uma mão carinhosa para refrescar sua fome.


Ninguém os molestava e eles, por sua vez, também não importunavam ninguém. Lentos e sem posturas, vagavam pelas ruas do bairro pela manhã e remexiam todas as latas e monturos de lixo. Sempre havia algo aproveitável. Até restos dormidos de comida eles guardavam nas bolsas.
 
 
Ela, deveria ter perto de uns setenta anos, enquanto ele, mais jovem, uns trinta. A palhoça ficava bem dentro de um matagal e deveria ter sido largada por alguém. Comiam alguma coisa e ele se jogava num velho colchão e dormia.


Um dia a mendiga adoeceu, não se sabe de quê. O médico do ambulatório que atendeu disse que era apenas uma infecção passageira e a medicou com algumas pílulas.

Mas com o passar dos dias, os remédios não fizeram efeito algum; pelo contrário, acirrava mais suas dores no peito e no braço. O mendigo, mesmo com ela no colchão, não deixava de sair toda manhã, trazia comida e tomava lá seus goles. Ela, arremedada cada dia com mais dores, com falta de ar, começou a falar coisas sem nexo, e a chamar pelo filho - era agonia que antecedia a morte.

 
A palhoça onde ficavam era aprumada com tijolos sem esquadria, embocada com barro saliente e varetas de paus. De um cômodo só, espalhavam-se de um lado os bagulhos retirados das ruas, um pequeno fogão à lenha e um colchão feito de trapos.

E de muitos trapos cozidos uns aos outros, até que fazia um grande monturo meio macio, que dava um aparente e falsa impressão de ser um colchão, que ficava quase rente ao chão. Nos dias frios a umidade saltava da terra e os emperdigava e os moía de gelado.

 
As necessidades eles faziam no mataréu, atrás da palhoça, um roçado aberto à foice, onde havia um buraco coberto por folhas de bananeiras.

 
A mendiga padecia a cada dia. O médico do ambulatório municipal já não sabia como diagnosticar seu caso. Mesmo porque lhe faltava material adequado para um exame mais profundo.


E parecia que não se interessava pela doença. O mendigo ficava ao lado dela e repassava a cada instante um pano úmido em sua testa, tentando confortá-la da dor que sentia no peito.

 
Numa manhã de inverno, ela morreu. O mendigo tento fazê-la despertar várias vezes e só respondiam músculos inertes; os olhos estavam semi-cerrados. Ele apenas a fitava e tentava despertá-la.

 
Uma tristeza o tomou quando os homens da funerária a colocaram num caixão sem tampa e a puseram numa camionete. Ele sabia que jamais a veria, nem onde seria enterrada.


Na verdade ela foi sepultada naquele mesmo dia, numa cova rasa, num caixão de madeira fina e barato. Era um lugar soturno e a prefeitura havia alinhavado o terro e dali nasceu o cemitério,  onde misturavam bandidos, prostitutas e toda sorte de gente inafortunada, pela vida. Lá colocaram apenas uma cruz.

 
A partir daquele dia o mendigo se transformou. Algo lhe tomou o corpo e começou a jogar fora todos os entulhos da casa; os bagulhos, as roupas dela, o fogão e uma infinidade de pequenas coisas que tinham apanhado na rua. Só deixou aquela cama de trapos.

 
Atordoado e fora se si pela perca da companheira ele tomou mania de limpeza. Passava os dias varrendo a palhoça. A terra chegava a se levantar de tanto que ele a socava. Mesmo limpo o chão ele mais o varria e depois se jogava na cama e dormia. Ao levantar fazia a mesma coisa. Começava a perder o sentido da vida.

 
Depois de um mês varrendo o chão que levantava poeira por todos os lados, ele bebia seu aguardente e saia para varrer as ruas. Começou varrendo a rua onde ficava sua palhoça. E durante uma semana lapidou tanto a rua que nem um graveto sobrou.



Depois teve a ideia de limpar as ruas do bairro. E todos os dias saia, antes do sol nascer, a passar a varrer - junto aos surpresos homens da limpeza pública - todas as ruas do bairro. Às vezes ficava horas abaixado tirando ciscos do chão, que se entremeavam entre as pedras dos paralelepídos.


E aquela varredura durou meses, sempre sob os olhares penosos dos moradores que nada falavam, apenas lhe dava comida e aguardente.

 
Um dia o mendigo teve outra idéia: porque não limpar o vento e o ar ? Então municiou-se de dois grandes panos macios e começou a esfregar o ar. Em gestos compassados e num só ritmo ele plainava o ar, como estivesse quase a voar.


Traçava vários ângulos, media posições, ora se agachava, ora ficava de cócoras, sempre à procura de uma posição, em que, para ele, o ar ficasse mais limpo. Era a morte chegando

 
Esta faina interminável durou meses. Sentia-se feliz e grandioso. Ele tinha descoberto algo que ele mesmo não sabia o quê. Bebendo muito, quase não comendo nada, foi lhe faltando forças e cada dia ficava mais debilitado.
Um dia morreu.


Fiscais da prefeitura encontram o mendigo caído no chão e com uma garrafa de aguardente na mão.  Foram quase dez meses depois que a mendiga morreu.

Foi enterrado em outro cemitério, bem longe dali.

Uma coisa ficou sem resposta : Porquê limpar o ar, o vento e a brisa?
E até hoje não se sabe como surgiu o encontro entre os dois. Dizem      que meses após o parto ela foi presa por roubo e o filho internado num reformatório. Nunca mais se viram.

Se encontram na morte. E nem na morte ficaram juntos.

( O mendigo José da Costa, segundo os médicos, morreu de um infarto. Meses mais tarde foi descoberto que ele era filho de Dna. Joana da Costa, a mendiga com que ele vivia, que havia morrido de câncer. Os médicos disseram que ele estava, antes do morrer,  intensamente desnorteado e via o ar - julgavam eles - figuras, formas ou alguma coisa que eles achavam que deveria desaparecer. Mas tudo ficou por isso mesmo, e a vida dos dois mendigos, foi esquecida.
E ninguém mais falou deles. Seus trapos foram queimados pela Saúde Pública e o casebre, derrubado, por um  trator, em pouco minutos.
 
José Kappel
Enviado por José Kappel em 21/01/2021
Reeditado em 21/01/2021
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