Para Igriane
Na televisão, dentro do quarto da mamãe, eu e meus quatro irmãos mais novos, assistíamos a um CD infantil antigo que tinha canções bem engraçadas. Era noite, o quarto estava com as luzes apagadas e a claridade da televisão só não era o único foco de luz por causa da claridade vinda por debaixo da porta que dava acesso à cozinha onde tia Nena ficava, tinha vindo nos reparar, enquanto que a mamãe e a tia Jaci estavam em um hospital.
No momento que assistíamos a canção dos Cinco Patinhos meu irmão percebeu que os personagens se encaixavam na nossa família.
– Gente, tive uma ideia, a gente é os patinhos filhos e a mamãe é a pata mãe, eu sou o um – disse Artur, meu irmão de cinco anos, pulando na frente da televisão, como sempre fazia, queria ser primeiro.
– Eu sou o dois! – gritei mais alto que os outros e deixei-os brigando para saber quem seria o terceiro, o quarto e o quinto patinho.
Não demorou muito, enquanto a canção rolava, para que eu desse conta que os patinhos também não tinham um pai, como nós. Papai havia sumido a dois meses atrás, deixando a mamãe sozinha para cuidar de tudo, ainda bem que tínhamos a ajuda da Tia Nena e da Tia Jaci. Fiquei um pouco triste e nem aproveitei a música, mas pude perceber que o final era feliz, depois dos patinhos se perderem a mãe pata havia os encontrado.
Quando o clipe terminou, eu fui ao banheiro, estava com vontade de fazer o número um. Antes de sair do quarto, com aporta ainda entre aberta, eu ouvi minhas tias conversando. Finalmente mamãe havia chegado, pensei.
Andei até a cozinha e antes de aparecer para elas, causando-lhe certo espanto, ouvi uma frase que não fazia sentido “Deu errado, Nena, e agora o que a gente faz?”. Perto delas, espantando-as e percebendo que mamãe não tinha chegado, perguntei ainda animada e confusa.
– O que deu errado Tias? Cadê a mamãe?
Elas se olharam momentaneamente e como se eu não estivesse lá Tia Nena sussurrou para Jaci “Eu disse que era para falar baixo, merda”. Na tentativa de consertar, o que eu ainda não sabia o que havia de errado, Nena se aproximou de mim, respirando forte e arrumando o cabelo, parecendo estar nervosa.
– Senta aí nessa cadeira, a gente tem que te falar uma coisa – disse ela, pausadamente e apontando para a cadeira onde estava sentada.
Obedecendo a ordem e tendo uma visão mais aproximada da tia Jaci, vi o seu rosto inchado de choro, assim como seus olhos vermelhos. Percebi que tinha acontecido algo. Novamente, como seu eu não estivesse naquele lugar elas trocaram olhares e uma gesticulou a outra para que iniciasse aquela conversa, que parecia de todos os modos a mais perigosa. Por fim, tia Nena tomou a decisão de falar, mas antes que terminasse de dizer sua primeira palavra, Jaci saiu da cozinha rapidamente, parecia estar desabando no choro.
– Meu bem – respirou bem fundo e puxou uma cadeira, sentando, antes de continuar – você nasceu com uma sementinha que seu pai colocou na barriguinha da sua mãe, você tem quatro irmãos e era muito difícil pra sua mãe cuidar de vocês. Seu pai colocou outra sementinha uns meses atrás na barriga dela e fugiu, nós três sozinhas não tínhamos como sustentar mais uma criança. Aí sua mãe foi em uma mulher, pra ela tirar essa sementinha, só que... que... ela virou uma estrelinha.
Eu não consegui nem começar a observer tudo aquilo que ela falava. Estava em choque, mesmo com a delicadeza das palavras.
– Então a mamãe não vem mais ficar com a gente? – falei em um tom choroso. Finalmente havia entendido por que Jaci estava daquele jeito.
– Não, não, não, meu amor. Ela ta, ta lá de cima junto de Deus guiando a gente, pra gente ficar bem. Ela sempre vai ta do nosso lado viu, a luz dela vai ta do nosso lado. – Acrescentou ela agachada e bem perto de mim, passando a mão no meu cabelo bagunçado.
– Pode fazer tranças no meu cabelo, então? Já que a mamãe não vai poder fazer!
Ela sorriu, estava com os olhos cheios de lágrimas, e me abraçou. Terminou de falar comigo perguntando se eu podia explicar tudo isso para os meus irmãos.
Assenti com a cabeça, saindo da cozinha, indo ao banheiro, para finalmente fazer o número um, e depois ao quarto falar com meus irmãos. Entrei no quarto, liguei a luz e chamei a atenção deles, desligando a televisão.
– Patinhos, desliguei por que tenho uma coisa pra falar pra vocês... A mamãe fez uma viagem lá pro céu e não vai mais voltar pra casa, mas não chorem, a gente vai ficar aqui, comendo pipoca, vamo ficar aqui com a Tia Nena, comendo bolo. – fui interrompida por uma fala que depois gerou uma repetição quase interminável.
– Eu quero bolo e pipoca! Falei primeiro, nhê nhê nhêeeee.
– Eu também, eu também.
– Quero só o bolo, um pedação!
– Ta bom, ta bom, já entendi, depois a gente pede pra tia Nena. Bora fazer uma carta, num aviãozinho de papel pra ela ver? – terminando de falar, todos responderam bem alto que queriam fazer, o que chamou a atenção de Nena que abriu a porta e viu a agitação de todos.
– Tia! A gente vai fazer uma carta pra mandar pra mamãe. Eu quero desenhar minha parte! – gritava Bruno, meu irmão de quatro anos, ansioso para começar a ajudar na carta.
Ela olhou para mim, enxugando algumas lágrimas e sorrindo.
Estávamos organizando todos os materiais e liguei novamente a televisão para deixar mais animado. No entanto quando o CD iniciou foi direto para a canção dos Cinco Patinhos, o que me levou a pensar. Pensar que a nossa situação agora era diferentemente, mas a mãe Pato não estava perdida, ela estava no céu e algum dia, todos nós íamos nos juntar a ela.
Portanto, Nós éramos os cinco patinhos em busca de nos juntar a nossa mãe, agora, porém, nosso objetivo era outro, fazer uma carta bem bonita e que deixasse a mamãe orgulhosa. Eu era a única, que estava na escola e sabia escrever algumas palavras. Quando todos os materiais estavam em mãos disse que iria escrever, eles falariam uma mensagem que queriam mandar e depois poderiam desenhar.
Decidimos a ordem que falaríamos e comecei a escrever cada fala.
Antes que eu iniciasse a escrita da minha parte, pensei muito na mamãe. Espantei-me, quando olhei sem querer a janela e avistei na profundidade da noite uma estrela tão brilhante, que jamais havia visto no céu, mostrei a todos meus irmãos.
– É a mamãe! – falei em um tom quase místico.
Terminado a carta, meus irmãos desenharam. Dobramos o papel, saíamos de dentro de casa empolgados e nos ventos frios daquela noite iluminada pela luz de uma estrela, lançamos o avião. Uma ventania ajudou aquela carta a desaparecer diante de nossos olhos subindo aos céus, indo em direção às mãos da maior e mais bela estrela que esse mundo já teve: Igriane.