TOTAL ECLIPSE DO CORAÇÃO.

Percival olhou, antes de atravessar a rua. Um carro. Uma moto. O bar do Gordo a frente, onde ele batia cartão de ponto, após a separação da companheira Salete. Um relacionamento de sete anos. Era o Gordo levantar a porta pesada de ferro pra abrir o bar e o velho Perci entrava. Ajudava, colocando as mesas na varanda. De vez em quando sintonizava a tevê, enquanto o Gordo passava pano no chão. A máquina de assar frangos, o balcão com doces e salgados. Os vidros com salsicha no molho de vinagre. Os ovos coloridos. A cartela de maços de cigarros. As garrafas de cachaça. As mais variadas bebidas. As bandejas de ovos. A estante de mercearias. As linguiças dependuradas. O velho relógio cuco quebrado. A fiação elétrica exposta. As bolas de mortadela. Os cartazes com propagandas de cerveja. Dois troféus do time do bairro, com teias de aranhas. Capas da Playboy, embranquiçadas pelo tempo, na porta do banheiro. Copos americanos no escorredor de alumínio. Uma mesa de sinuca. A criançada compra bala, a caminho da escola. Uma moça faz jogo do bicho. Um senhor pede um pingado. Percival assiste a tudo. A mulher do Gordo chega para auxiliar o marido. -"Bom dia, Perci. Ainda na pensão Aurora?" Ele pôs as mãos no bolso. O rosto triste, a voz embargada. -"Ainda! É bom lugar, estou lá há dois meses." A turma chegando aos poucos. Paulinho e Samir, antigos amigos de escola, viciados em sinuca. -"Perci. Toma uma branquinha antes da gelada?" Ele aceitou. Um amendoim torrado pra acompanhar. As lembranças de escola. Falavam de filhos, viagens, casas, apartamentos e acampamentos. Percival sorria. Ele não tinha nada daquilo. Sem casa própria, sem filhos. Não concluira sequer o ensino fundamental. Tinha saído cedo da casa dos pais, inconformado com a separação deles. Morou um ano em Lisboa mas foi extraditado. Os amigos Lucas e Hércules chegaram. Percival coçou a cabeça. Cumprimentou os antigos amigos de firma. -"E aí, Perci? Tá vivo ainda?" Brincou Lucas, dando um tapa no ombro dele. -"Fui no advogado essa semana. A indenização está em análise." Os amigos sorriram. Os amigos mostrando vídeos no whatsapp. O Gordo não se conteve. -"Essa indenização vai sair depois que você bater as botas, Perci. É papo de advogado que te enrola há vinte anos." Ele ficou inapto ao trabalho, devido a uma queda na empresa. Ganhou uma aposentadoria mas o governo tirou-lhe o benefício, seis anos depois. Nunca mais trabalhou registrado. O sol de meio dia. Um entra e sai do bar. As contas dos fregueses a mostra, seguradas por um pregador de roupas. O Gordo foi pra casa almoçar. A esposa assumiu o balcão. Uma coxinha solitária na redoma. -"Me dê essa coxinha, dona Flora. Uma tubaína." Era o almoço dele. Resolveu dar uma volta no bairro. Uma passada na praça, na padóca do Lau, um bate papo na lotérica. Voltou ao bar do Gordo. O jogo do Palmeiras contra o Quinze de Piracicaba na tevê. Pediu um cigarro ao Miguel, encostado no balcão. O Gordo fritando pururucas. Dois cachorros vidrados na máquina de assar frangos. -"Sabe quem morreu, Perci? O Brito!" Disse o Minhoca, jogando dominó com o Alemão. Ele puxou pela memória. -"O Brito, irmão do Gabriel? Aquele que tinha uma papelaria na rua das Bromélias? Estudou com a gente!" Ele entristeceu. Olhou para os amigos no bar. Todos cinquentões, cabelos grisalhos, como ele. A esposa do Gordo com expressão cansada, auxiliando o marido no bar. Ele abaixou a cabeça. Não movia uma palha em casa. Salete trabalhava fora e ainda mantinha a casa impecável. -"Homem que usa avental vira fruta! Serviço de casa é pra mulher!" Ele dizia. A chuva fina, ao cair da tarde. O Gordo distribuindo pururuca de graça. A galera pedindo cerveja pra acompanhar o petisco. -"Amor, acabou o jogo. Coloca uns clipes pra gente!" Gritou o Gordo pra esposa. Perci pediu uma cerveja. Bom papo com os amigos Rivaldo, Tuta e Sandro. Um carro parou em frente ao bar. O motorista saiu e deu a volta, abrindo o guarda chuvas e protegendo a moça. Salete entrou no bar. A mulata num vestido curto e estampado. Uma bandana e os longos cabelos que desciam até a cintura de pilão. Todos os olhares para a moça. Perci se levantou. -"Gordo. Vim buscar o pernil que reservei!" Um rapaz de terno entrou. Ele abraçou Salete. -"Não esqueça o vinho, amor." Salete sorriu e o beijou. -"Parece que a fila andou!" Cochichou Sandro a Rivaldo. Perci escutou. O clipe na tevê. -"Essa eu conheço, Gordo! Total Eclipse of The Heart, da Bonnie Tyler. Tocou muito nas rádios." Gritou o Tuta. Percival engoliu em seco, vendo Salete sair sem o notar. Aquela era a música deles. Ele pegou a garrafa e saiu. Melhor ficar sozinho, na mesa da varanda, onde ninguém podia ver seus olhos marejados. FIM

marcos dias macedo
Enviado por marcos dias macedo em 14/01/2021
Reeditado em 14/01/2021
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