O Ano Novo de Muriel
Muriel sentia internamente uma certa falsidade toda vez que chegava a época de Ano Novo e iria se dirigir às pessoas com votos de toda sorte. Aquilo para ela se esvanecia de sentido por estar concentrado naquela época. Por que isso? Por que o sentimento de se querer tanto bem ao próximo era, não exclusivo, mas tão enaltecido no momento da passagem de ano?
Ela sentia mesmo uma falta de atributo e qualidade do que se propunha ser verdadeiro, mas não era. Via e lia as mensagens de votos de um ano novo cheio de saúde, paz, amor, compaixão e os desejos de tudo haver de ser melhor dali em diante. Toda aquela coleção de mensagens que se utilizavam de uma das muitas funções sintáticas da palavra “que”: “que o ano de dois mil e tal seja repleto de saúde e realizações”; “que isto isso”, “que isto aquilo”, argh!
Nada lhe incomodava mais do que ter que retribuir os votos, os desejos de que alguma coisa se realizasse e se concretizasse, porque tudo era tão genérico e desprovido da individualização necessária para se revestir de algo que se possa considerar mais intenso em sinceridade. E ela se sentia compelida a responder todo esse conjunto de mensagens da mesma forma.
Para ela aquilo não deveria ter essa imposição invisível. O peso que ela sentia sobre seus ombros era a da coerção social, o conceito sociológico com o qual se convive todo o tempo sem se perceber e que representa a pressão que a sociedade exerce sobre os indivíduos com base em suas normas de conduta. Isto é, não é algo da escolha individual das pessoas. Então, pensava ela, que valor ela poderia atribuir, ela mesma, às suas próprias mensagens de fim de ano?
Na prática ela sabia que, passado aquele momento, a vida cotidiana voltaria a ser exatamente como era no dia anterior e as pessoas retomariam as suas atitudes com o mesmo egoísmo e com as suas mesmas idiossincrasias.
Sim, Muriel bem sabia de todo o simbolismo que tudo isso representava. Era o réveillon, palavra que veio do francês e que significava o “despertar”, o “acordar” para um novo ciclo que se iniciava. Era hora de fazer pedidos, refletir, fazer planos e de desejar “tudo de bom” para “todo o mundo”. Mas algo não batia, importunava mesmo seu coração. Para ela faltava a lhaneza, a simples sinceridade com a verdade. Ela simplesmente se recusava a contentar-se com os conceitos mais simbólicos do que práticos do réveillon.
Que problema haveria de se desejar as coisas boas para si e para os outros durante o transcorrer do tempo como dimensão inexorável da existência? Ela sabia que todos diriam que não haveria problema algum, contudo a sua percepção emotiva era com a autenticidade dos sentimentos da pessoa humana para com a pessoa humana. Nada mais distante da tradição robotizada do dito “ano novo”.
Havia muito mais marcos durante um ano do calendário, muito mais importantes, do que a passagem do dia 31 de dezembro para o dia 1o de janeiro. A mudança de uma residência, um casamento ou descasamento, um novo emprego, a morte, o nascimento de um filho – nossa! –, tantas coisa que podem definir ciclos na vida de cada um. O dia mesmo de seu aniversário era baliza da sua própria contagem de anos, assim como era de todo o mundo, ela tinha a certeza. Então, ora bolas!, por que todo esse frenesi de compacta obrigação?
Conferia-lhe mais sentido as palavras de sua querida amiga, estudiosa da abordagem integral dos fenômenos energéticos humanos, que exortava a todos a acordar todos os dias com a mesma sensação de recomeço do dia de um novo ano; que cada um cultivasse a cada dia o frescor de novas possibilidades e que a presença, a constância e a consciência constituam a melhor forma de aproveitar o caminho e fazer uma linda jornada.
Por que não?
Muriel, absorta nas suas reflexões e no cuidado que tinha em relação ao próprio processo de entendimento, ia terminando o bom vinho que havia se servido para a ocasião. Sorveu o último gole e foi tratar de responder as mensagens de Feliz Ano Novo!