O distraído
Marcelo chegou à sua casa às dezoito horas e trinta minutos. Retirara-se da loja de calçados na qual trabalhava de caixa minutos depois das dezoito horas, um pouco irritado devido à atitude de um cliente, que, esnobe, soberbo, tratara-o com desdém e o constrangera na frente de três clientes e dois funcionários da loja – o sangue a ferver, os punhos cerrados, Marcelo rilhava os dentes, atiçando-o pensamentos que o exortavam a se arremessar contra o cliente que o destratava; soubera conter-se, no entanto.
Chamou por Renata, sua esposa. Ela não estava na casa. Marcelo rumou ao quarto, entrou no banheiro, do qual retirou-se vinte minutos depois, banhado, chinelos-de-dedos nos pés, camisa regata e short, barbeado, de cabelos penteados, e rumou à cozinha para preparar o jantar, o seu e o da Renata, e na cozinha encontrou Renata, à pia, lavando tomates e cebolas, saudou-a, beijou-a, nos lábios, e ela censurou-o:
– Tu és muito distraído, Marcelo.
– Eu? – perguntou-lhe Marcelo, surpreso com a declaração.
– Sim. Tu.
– Por que eu sou distraído?
– E ainda me perguntas? – e sorriu Renata.
– Não sei por que me dizes que sou distraído.
– Fui ao consultório da doutora Jaqueline levar os resultados dos exames médicos, os quais ela me pediu, na semana passada, passei na agência do banco **, e saquei R$ 500,00; ao sair da agência, te vi saindo da loja, chamei-te, uma, duas, mil vezes, e tu não me ouviste. Gritei, e tu a olhar, distraído, para o outro lado da rua.
– Não te ouvi.
– Claro que não me ouviste. Estavas distraído.
– Que horas eram quando me chamaste?
– Minutos depois das seis… Há alguns minutos. Abaixavam, já, as portas da loja.
– Tive a sensação de que eu ouvia alguém a me chamar.
– Tu és muito distraído, Marcelo. Chamei-te várias vezes, e não me ouviste. E tu não estavas muito longe de mim. Ouviste, me ouviste, mas, distraído, não reconheceste a minha voz.
– Eu não estava distraído, Renata.
– Não?
– Não. E eu não sou um homem distraído.
– Tu não és um homem distraído? Claro que és, Marcelo. Tu andavas a olhar não sei para onde, e, distraído, esbarraste, eu vi, em um homem, senhor de idade, derrubando-lhe a caixa que ele trazia consigo.
– Eu fiz isso?
– Fizeste. E aquele senhor de idade te chamaste a atenção, e tu, distraído, não o ouviste.
– Não percebi o que fiz.
– Claro que não; estavas distraído.
– Eu não estava distraído, Renata.
– Estavas, sim. Distraído estavas, Marcelo. Distraidíssimo.
– Tu me ofendes, Renata.
– Ofendo-te?
– Sim. E duas vezes.
– Explica-te.
– Explicar-me-ei a ti. Ao chamar-me de distraído, sendo que distraído não sou, tu me atribuis características que não me pertencem.
– Que dramático!
– Não zombes de mim, Renata.
– Continues.
– Continuo: Além de me atribuir distração, tu, após eu dizer-te que eu não estava distraído, insististe em me chamar de distraído, chamando-me, portanto, de mentiroso, e mentiroso não sou. Tu me ofendestes, Renata, duas vezes.
– E tu não estavas distraído, não?
– Não. E provo. Tu me chamaste, e não te ouvi, e esbarrei, tu me disseste, em um senhor de idade, derrubando-lhe a caixa que ele carregava. Não foi por distração que não te ouvi e que derrubei a caixa que o senhor de idade carregava ao nele esbarrar-me e que não o ouvi recriminar-me. Naquele momento, eu estava concentrado, muito concentrado, em uma morena de um metro e setenta, de minissaia verde e camisa branca decotada, que andava, melhor, desfilava, na calçada, no outro lado da rua, e eu…
E Marcelo cessou o relato ao fitar Renata, e notar-lhe o rosto carregado e o olhar ameaçador a fuzilá-lo, e ver, na mão direita dela, uma faca. E tratou, rapidamente, de de sua esposa afastar-se. E retirou-se, correndo, da cozinha.