Uma noite portenha
Cris abriu a porta meio sem jeito. Deixou as compras no chão por um instante e se virou para trancá-la. Respirou fundo, feliz por ter chegado depois de um dia longo e cansativo.
Guardou os temperos primeiro, depois o queijo e por fim os vinhos. Desarrolhou um deles imediatamente e serviu uma taça para si. Merecia um pouco disso. Foi até o sofá de chintz e pelo aplicativo do celular ligou o aparelho de som. Uma guitarra suave, pratos de bateria, o doce som do sax. Aquilo trazia calma.
Permitiu-se fechar os olhos por um momento. A tensão no pescoço já diminuíra um pouco. Abriu os olhos novamente e apreciou a decoração do loft. Aquele lugar parecia enorme para alguém que morava só. Um estúdio nova-iorquino que transformara em lar, um achado em meio ao caos portenho, que decorara com tanto esmero. A enorme janela revelava uma vista simples, mas impressionante. Os prédios históricos de Buenos Aires e uma ponta de rio que adorava olhar para buscar inspiração. O sol já se perdia no horizonte e as cores da cidade ganhavam contornos indescritíveis.
Antes de terminar a taça já tinha pegado sua agenda e a caneta. Checou os compromissos que teria no restante da semana. Na tarde seguinte fotografaria uma velha amiga ali no loft mesmo. Olhou em volta para tentar imaginar o cenário ideal para aquelas fotos. A amiga era bem urbana, cheia de atitude. A cidade vista pela janela era o plano de fundo perfeito. Talvez com a cortina como elemento do cenário. “É, vai ficar ótimo.” Pensou.
Terminou a taça de vinho e já separou a câmera, o equipamento de iluminação e até alguns vestidos que achou que ficariam bem na amiga. Depois buscou o caderno de anotações e sentou-se no beiral da janela. A noite já tomava forma. Rascunhou um pouco sobre o que achara do filme que assistiu na noite anterior. Pensara o dia todo sobre o que iria escrever. O filme tinha falhas de roteiro, é verdade, mas a fotografia era tão bonita, aquela atriz (não conseguia lembrar o nome dela e fez uma nota para pesquisa-lo) tão intensa e expressiva.
Escreveu dez ou quinze linhas e parou para revisar o que tinha até aquele momento, a caneta encostada nos lábios, a mão inconscientemente alisando e enrolando a franja e depois percorrendo a parte raspada do cabelo. Achou que fizera um bom trabalho. Mais tarde escreveria o texto final.
Sempre adorou o glamour e a falta de rotina da vida artística. Nunca se dera bem estudando regularmente. Então, empenhou-se como nunca no curso de fotografia, depois no de teatro, no de desenho e até na distinta e aclamada Escola de Roteiros de Palermo, onde se apaixonara perdidamente por cinema.
Começara a fotografar profissionalmente ainda em São Paulo. “A cidade com a melhor cena cultural do mundo, arte para todos os gostos a qualquer hora do dia”. Ou ao menos era o que achava até descobrir Buenos Aires. Aquela cidade despertava algo completamente inexplicável em seu corpo e em sua alma.
Depois, por diversão, começara o blog de cinema. Nunca achou que aquele hobbie se tornaria algo rentável. Expandiu para toda a cena de cultura Pop que gostava. Agora estúdios faziam convites para que assistisse seus produtos antes do resto do publico. Artistas independentes talentosíssimos (e outros nem tanto) mandavam mensagens atrás de divulgação.
Não podia negar que alcançara um nível de realização inesperado. Embora continuasse com aquele eterno sentimento de que as coisas não estavam completas. “É a cabeça de artista que teima em me manter fora da zona de conforto”, pensava. Mas sempre faltava algo para se considerar realmente feliz.
Despertou de seu devaneio quando o telefone tocou. Aquilo foi surpreendente. Há tempos não recebia uma ligação. “Que coisa antiga”, pensou. Ao olhar a tela do aparelho, um nome que mal lembrava. Cintia, uma ex namorada com quem tivera diversos problemas. “Mal resolvido” era o nome mais eufêmico que poderia dar àquela relação.
Sem saber bem o que fazer, Cris atendeu a ligação, mas afastou o celular da orelha, colocando-o no viva-voz.
- Alô, Alô?! Cris, é você? – Começou uma voz visivelmente embriagada. – Fala comigo, Cris. Eu sinto tanto a sua falta. – Conforme falava, a voz se tornava mais e mais chorosa, pausada e pontuada por suspiros.
- A gente precisava conversar, Cris. Podíamos marcar uma sessão de fotos, né? Você sempre gostou de me fotografar. Lembra daquele ensaio no alto de um prédio na Paulista? Aquele dia foi incrível e eu... – Um suspiro alto se seguiu a frase apressada. – Acho que eu não devia ter feito isso.
Logo depois, apenas os Pi Pi Pis da ligação sendo cortada. Cris não esperava por aquilo. Não sabia como reagir. Fazia tempo que Cintia não ligava, mas agora que ouvira sua voz, aquilo despertava tantas lembranças.
Balançou a cabeça, queria tirar aquelas imagens do alto da Paulista da mente. Não deveria focar no passado, sabia disso, mas...
Foi então que o interfone tocou. “Droga! Eu esqueci que ele vinha”. Levantou apressadamente e tentou se arrumar do melhor jeito que pode.
- Oi, Cris. Eu trouxe uma torta que eu mesmo fiz e tenho uma música nova pra te mostrar. Me deixa subir, vai. – Disse uma voz empolgada.
- Só um minuto. Pronto! Abriu aí?
Não houve resposta. Mas o som do portão batendo novamente deixou claro que André já entrara. Em poucos minutos ele já batia na porta e entrava com um belo sorriso no rosto, uma mochila nos ombros e um tupperware nas mãos.
Antes de Cris ter qualquer reação, André se aproximou e beijou-lhe os lábios macios ainda sorrindo e já abria as gavetas em busca de uma faca para cortar a torta.
- Você precisa ouvir esse som novo que eu compus. Acho que com essa eu emplaco no youtube e vão me chamar pelo menos pra acompanhar alguma dessas bandas nos shows de Tango por aqui. Espero que seja a do Viejo Almacen. Gosto deles.
- É. Claro, claro.
- Por que essa cara de espanto, Cris? Vem, prova um pedaço dessa torta. Acho que está ótima. E, hum, você abriu um vinho e nem me esperou. Já até tomou uma taça. Vou ter que tomar duas para compensar. – Disse sorridente.
“Ele realmente tem um sorriso lindo”. Pensou Cris por um instante. Mas ainda estava com a cabeça confusa. A ligação de Cintia, toda a empolgação de André, ainda tinha algumas coisas que queria fazer. Por que será que nunca conseguia ficar só quando precisava?
“Depois você reclama que não tem companhia quando se sente carente. Não reclame agora”. Disse aquela velha voz na sua cabeça. A voz teimava em fazer sentido quase sempre. Era irritante.
Quando voltou a si, André já tirara o sax de dentro da mochila e testava algumas notas antes de realmente começar a tocar.
- Ouve só. – Disse ele segundos antes de encostar o lábio no bocal.
- Dé, está tarde. Os vizinhos...
Mas já era tarde para o comentário. Antes de terminar a frase os ouvidos de Cris foram invadidos pela doce melodia do sax. Fechou os olhos instintivamente. A música era linda. Lembrava as canções dos anos 20 que sempre adorara, mas tinha um toque de modernidade, um lamento sofisticado.
- É lindo. – Disse sorrindo, sem conseguir controlar.
Aquele simples sopro de arte fez com que lembrasse porque gostava tanto do rapaz de barba desenhada. Passou a reparar nele com mais atenção. Vestia uma calça jeans surrada, uma camiseta preta de mangas longas. Mantinha o cabelo comprido o bastante para ficar linearmente despenteado. Nunca grande demais a ponto de perder o controle sobre ele.
Enquanto tocava mantinha os olhos cerrados, dançava conforme a melodia lenta e romântica. Assim que terminou a ultima nota e abriu os olhos quase caiu para trás. O peso do corpo de Cris sobre seus braços pegou André desprevenido. Mas assim que venceu a surpresa afagou seus cabelos e buscou novamente aqueles lábios macios.
Deixaram de lado o vinho, a torta e o que mais estivesse ali em volta no cômodo simples que Cris adorava ter como lar. Quando se deram conta estavam com os corpos colados um ao outro, naquele mesmo beiral da janela onde gostava de escrever.
André afagava os cabelos de Cris colado a seu peito. Adorava aquela duplicidade de texturas. Franja longa, lateral raspada.
- E eu achando que você ia me dispensar rapidinho hoje pela cara com que me recebeu.
- Não vou negar que pensei nisso. Queria uma noite só pra mim, sabe? Amanhã vou fotografar aquela minha amiga da Recoleta e queria já preparar tudo, imaginar o ensaio e etecetera. Também tenho uma crítica pra terminar.
- Qual amiga da Recoleta? A ruiva cheia de tatuagens? – Perguntou André, aparentemente ignorando o restante da frase.
- Ela mesma. Agústina, a dançarina dos cabelos em chamas. – Disse tentando representar um fogo crepitante com as pontas dos dedos.
- E por que essa preocupação toda? Ela já é linda. Não tem como as fotos saírem ruins.
- Exatamente por isso. Quero mais do que beleza. É um dos ensaios para ser perfeito. Quem sabe assim finalmente vou expor em Palermo.
- Você quer é dominar o país inteiro. Meu irmão só vai assistir um filme ou uma peça depois de ler suas criticas sobre eles.
- Diga a ele que não se prive de nada por minha causa e tome suas próprias decisões. Eu só recomendo o que gosto. Mas pode ser que ele tenha um gosto bem diferente do meu.
- Pelo que sei não é só ele. Da ultima vez que vi sua critica sobre o “Maldita Milonga” já tinha quase 100 mil curtidas. Quem diria que um ser de sangue brasileiro ia ditar o ritmo da cultura POP portenha.
- Até parece. – Disse Cris enquanto refletia. – De alguma forma acabou dando certo, né, Dé? Nunca achei que funcionaria de verdade. Sair do Brasil, largar emprego, família e vir pra cá tentar a vida com arte.
- Você sempre teve essa alma de artista. Pelo menos isso ficou claro para mim desde que te conheci.
- Não sei dizer se tenho isso. E confesso que mesmo com o blog rodando bem, as sessões de foto e tudo mais, ainda sinto que falta algo, entende? Às vezes me pergunto se é alguma coisa nova que quero fazer e ainda não descobri exatamente o que é, se é algo que deixei pra trás e não devia ter deixado, se é o fato de não conseguir fazer tudo que quero nesse espaço curto que a gente chama de vida.
- Você sabe bem que ninguém consegue fazer tudo. – Respondeu André parando com o cafuné por um instante.
- Mas por que não? O ser humano é capaz de tanta coisa. Por que ainda assim queremos mais do que podemos?
- Tá aí uma boa pergunta. Nunca pensei sobre. Mas será que não é exatamente o que nos faz evoluir e ir além?
- É claro que é. Mas isso também significa que estamos fadados a nunca estar plenamente felizes. Sei lá, isso me soa injusto de diversas formas. Sei que a tristeza é necessária, sei que precisamos nos inconformar para fazer algo realmente mudar. Foi por isso que saí do Brasil. Nunca aceitei as injustiças e a falta de explicação das coisas. E enquanto estava lá eu nunca achei que fui feliz. Mas aí eu saí de lá, mudei tudo, conquistei coisas e... puf. Cadê a tal da felicidade?
- Você deixou coisas pra trás. Sempre vai rolar saudade.
- Não posso dizer que é isso. Você sabe que minha família nunca foi tão próxima de mim. Nunca me aceitaram como eu sou e tal. Claro que fazem falta, mas não posso dizer que rola uma SAUDADE mesmo, entende?
- Vai ver o que você deixou pra trás foi um grande amor. – Falou André buscando olhar diretamente nos olhos de Cris.
- É. Vai ver foi isso. – Na cabeça, instantaneamente, veio novamente a imagem da tarde na Paulista.
- Ei. – Disse André dando-lhe um beliscão no braço com mais força que o normal. – Eu estava brincando. Afinal, você me ama, não?
Cris achou que veria um sorriso no rosto do rapaz. Mas ele fechara a cara.
- Lá vem você de novo com essas inseguranças. Sabe que eu não suporto isso. – Disse acariciando levemente o braço do rapaz com a ponta dos dedos.
- Vai ver você não me suporta mesmo. Foi um grande azar ter achado um brasileiro que gostasse muito de você em Buenos Aires, mas agora que já se adaptou ele deixou de ter serventia.
- Para de falar besteira. Sério. Você sabe que não gosto disso.
- Eu vi seu olhar indo pra longe quando falei de deixar um amor pra trás. Eu sei aonde seu pensamento foi. Eu consigo lidar com modelos incríveis posando pra você dia sim, dia não. Mas não sei se consigo lidar com perder espaço na sua mente.
André levantou de forma abrupta, tirando o apoio de Cris. Ele procurou a camiseta e pegou o par de meias no canto do sofá. Sentara-se na cadeira e começara a se vestir sem dizer mais nada.
- O que é agora? Eu começo a refletir sobre a vida, você se irrita sem motivo algum e vai embora, é isso? Esse é seu jeito de resolver as coisas? Não há nem motivo pra gente estar tendo essa discussão. Às vezes eu acho que você só faz isso para me irritar. Uma espécie de teste sádico.
- É exatamente isso. Você é o centro do universo e tudo que eu faço é por sua causa. Quer saber, eu preciso de um tempo pra mim também, sabe. Vou deixar você pensando no seu ensaio de amanhã, escrevendo sua crítica. Acho que é uma boa termos mais tempo pra nossas atividades individuais. Aproveita a torta, tá. Eu já estou sem fome.
André nem mesmo se despediu. Terminou de se vestir, pegou a mochila e saiu. Ao virar ainda esbarrou na taça espalhando cacos e um resto de vinho no tapete. Se ele percebeu ou só não se importou era difícil precisar. Cris não sabia de onde tinha vindo toda aquela discussão. Não houvera razão nenhuma para aquilo. A irritação ia tomando conta de seu corpo, as lágrimas descendo os olhos eram a prova maior disso.
A voz na cabeça voltava a dizer “você não estava querendo ficar só? Sabe que ele é sempre esse furacão sem motivo aparente. Ele vai voltar como se nada tivesse acontecido. Aproveite esse tempo para você”. Mas ao mesmo tempo a voz gritava de um lado mais distante da mente “Tá vendo, companhia é sempre benvinda. Agora vai fazer falta e uma noite legal vai ficar uma merda”.
Conhecia André. Ia passar a noite em algum bar e não ligaria até pelo menos a próxima noite. Mais calmo e sabendo que Cris já não estaria mais com tanta raiva do que acontecera. Ele não costumava falar abertamente sobre estar arrependido da reação exagerada, mas o olhar de cachorro pidão era o indicativo incontestável.
Tentou tirar aquilo da cabeça enquanto as lágrimas ainda desciam por suas bochechas. Arrumou mais algumas coisas para as fotos, depois se sentou e abriu o notebook para escrever a resenha que começara no papel. Mal colocou duas linhas na folha em branco e se irritou. A imagem do ótimo momento virando discussão, absolutamente do nada, tomou sua cabeça. Fechou o notebook e serviu outra taça de vinho.
Bebeu mais rápido do que notou e logo esvaziou a segunda taça em sequencia. Despiu-se ainda na sala e foi para o chuveiro. O toque da água quente em sua pele macia afastou um pouco a raiva. E quando tentou pensar no exercício de resolução de problemas que a primeira terapeuta dera, foi incapaz. O rosto de Cintia voltou com força total.
Não só o rosto tomou sua mente. A camisa tremulando ao vento no alto daquele prédio. Era tudo que cobria (ou mal cobria) seu tronco. A cada nova pose que fazia mudava a expressão. Do carão mais sedutor que possuía ao sorriso mais espontâneo e singelo que guardava escondido.
Começou a lembrar do seu toque, do seu beijo, da pele quente e arrepiada contraponto com o vento gelado da capital paulista. Aquela sessão de fotos foi a primeira vez que Cris se considerou no meio de uma loucura. A primeira história louca que tinha pra contar nas tardes bebendo com os amigos ou nas noites de comédia romântica comendo sorvete. Fora fantástico.
Mas era passado. Desligou o chuveiro e junto com a água, as memórias se esvaiam pelo ralo. Repentinamente sentiu o frio da noite no corpo nú e do momento de solidão recheado de um passado mal resolvido deixado para trás.
Agora o sentimento de culpa se misturava com centenas de outros. Ainda achava, como sempre, que André fora explosivo, intempestivo e infantil. Mas ao mesmo tempo, talvez não fosse justo manter essa relação sabendo que toda a história com Cintia ainda rondava seus pensamentos.
Não podia controlar os pensamentos. Que dirá os sentimentos. “Se fossemos donos do coração a vida seria sem graça, sem surpresas e robóticas” lera certa vez em algum lugar. Voltou a sentir mais raiva. “Por que ele simplesmente não entende que ainda existe sentimento, mas é com ele que estou agora?” “Por que tanta insegurança?”.
Voltou a olhar para a noite de Buenos Aires. O pedaço de rio que enxergava estava iluminado pela lua. De alguma forma aquilo tranquilizava seu coração. “O mundo continua girando apesar de você, Cris”. Dizia a voz em sua cabeça.
Por que não podia ser livre pra pensar o que quisesse, para estar com quem quisesse, para fazer tudo o que tinha vontade? Por que não podia exercer em sua totalidade as múltiplas possibilidades de ser que cada ser humano tinha?
Pensou em tomar mais uma taça de vinho. Desistiu, a tontura já alterava seu estado natural de percepção. Em vez disso abriu a janela e subiu no beiral onde costumava se sentar. Sentiu a brisa na pele nua. Entregou-se a ela, fechou os olhos, abriu os braços e por um momento.
E naquele breve momento não pensou em mais nada. Sentiu-se livre, talvez, pela primeira vez.