Responsável, vive só
É um sujeito responsável, vive só. Funcionário competente, há anos que – não é falhar, não – nem chega atrasado. Respeitador, humilde, submisso, patrão nenhum pode ter queixa dele. Chefe do escritório sem demonstrar vaidade.
- Bom dia, dona Márcia!
- Bom dia, seu Clóvis!
- Passou bem de ontem?
- Muito bem. E o senhor?
- Bem, obrigado!
Todo dia as mesmas palavras à recepcionista, sorriso nos lábios, os dentes alvos, o ventre avantajado, o andar vagaroso, a respiração difícil depois do lance de escadas - não usa o elevador, diz precisa de exercício. Ao adentrar sua sala, uma palavra ao auxiliar preocupado com seu cansaço:
- É a idade, filho. Não tem conserto. É o tal de “processo irreversível de depreciação”. Na minha terra, dizem diferente: o sujeito está ficando “encarangado”.
É um sujeito responsável, vive só. É o primeiro a chegar à repartição. Entra em sua sala, vai descansando o paletó, afrouxa a gravata e toca a labutar, que a vida é dura.
- Não tenho distração. Gosto de trabalhar, ser útil, meu pai me ensinou assim.
Na recepção, os comentários.
- Muito respeitador, diz dona Márcia, a esguia recepcionista sempre naqueles decotes provocantes:
- Nem sequer me encara, o velhinho! E onde é que ele mora, hein?
- Uê, tá interessada - provoca a Nilce, inimiga não declarada - dizem que tá bom de grana, não gasta com nada...
A outra nem responde.
Todos têm uma vaga noção, ninguém fica sem dar palpite. Sabe-se que é lá para os lados do Carlos Prates ou Calafate, mas ao certo mesmo ninguém sabe. Mas tem sempre um palpite:
- Ele tem uma casa onde vai ser construída a Via Expressa. Vai ganhar uma grana de indenização.
- Alguém aqui já foi à casa dele, pergunta o contador Domingos.
Ao que se sabe, ninguém.
- Também em cidade grande é cada qual por si e Deus contra todos, quer dizer, Deus por todos - entra na conversa o piadista Eduardo, do arquivo da Contabilidade.
- Sabe, emenda Arnaldo, o datilógrafo do crediário – tem mês que nem converso com meu irmão. Mal o vejo. E olha que dormimos no mesmo quarto...
Na segunda-feira, rotina de chegada ao escritório. Uma pergunta circula no ar:
- Uai, seu Clovis ainda não chegou?
- Não, dona Márcia.
- Engraçado... O café tá pronto?
- Tá, responde a copeira.
Era a primeira vez em muitos anos que se atrasava. A bem dizer, a primeira vez que seu Clóvis não aparecia antes do pessoal do escritório. Antes dele só mesmo o faxineiro, assim mesmo porque dorme na firma, pega um bico como segurança.
- Na certa foi o trânsito.
- Talvez um resfriado, logo vai ligar.
- Vai ver chega mais tarde ou telefona, Arnaldo. Aliás você bateu as cartas que são pra enviar às embaixadas em Brasília? Queria pôr no correio hoje.
- Ah, sim. Toma aqui, Dona Márcia. Ah, você, por acaso ficou sabendo se o pagamento sai hoje mesmo?
Era um sujeito responsável, vivia só. E apenas por causa do mau-cheiro que exalava do apartamento é que foram descobri-lo, na terça-feira, caído no meio do quarto, em decúbito dorsal, o nariz fraturado e manchas já secas de sangue. Na certa, tinha ainda tentado chamar um médico pelo telefone ou buscar algum comprimido no banheiro. Infarto, a “causa mortis”.
No escritório, às nove da manhã, todo o pessoal reunido. O gerente metropolitano com a palavra:
- Bom, agora vamos ao que interessa. Este é o senhor Valter Silva Sanches. Vem substituir o senhor Clóvis na chefia do escritório.
- Prazer, Arnaldo.
- Prazer, Márcia.
Depois das apresentações, a voz do gerente, autoridade e eficiência:
- Bom, agora de volta ao trabalho. A empresa é uma engrenagem e vocês são os dentes Ninguém pode falhar. Ah, mandamos rezar uma missa amanhã em intenção da alma do sr. Clóvis. Ás sete da noite, igreja do Calafate, bairro onde morava.
Diz Dona Márcia, que já especulou sobre a vida do novo chefe: o senhor Valter Silva Sanches é um sujeito muito responsável. E vive só.