Os dois lados do espelho

Olhar perdido fixado num poste, até que Eduardo ouve a buzina do carro de trás, percebe que o farol abriu e segue viagem. A mulher no banco traseiro, o chama:

- Jefferson, né?

Ainda meio desacostumado, Edu balança a cabeça positivamente e diz:

- Sim, isso mesmo.

- Depois do farol vire e próxima esquerda, é o caminho mais rápido. Diz a passageira.

Eduardo trabalha como motorista de aplicativo, porém usa o carro e o documento de seu amigo Jefferson. Eduardo é foragido da justiça, procurado por tráfico de drogas, sabe que é um risco trabalhar na rua, porém aceita o risco para ver o crescimento de seu filho que teve com sua ex namorada, que o largou quando ele foi preso. Conseguiu saída provisória no último dia das Mães e nunca mais voltou, ele tenta recomeçar sua vida.

Gabriela, a passageira, pega o celular e faz uma ligação:

- Alô, você já está em casa?

Ouviu uma resposta e retrucou:

- Como assim ela ainda está aí? Você me tirou de casa e ainda ela está aí? Se vira, dá um jeito, eu estou chegando! Gabriela desliga o telefone aparentemente irritada.

Suspira profundamente, o silêncio toma conta do carro, de repente Gabriela pergunta ao Edu:

- Você já tomou alguma decisão importante na sua vida, pensando em outra pessoa?

- Sim. Responde Edu friamente, ele percebe do que se trata, fica meio sem jeito de falar alguma coisa.

Até que Gabriela diz:

-Não é fácil fazer o que faço, ou me submeter a algumas situações, até acho que existe um sentimento entre nós, mas na verdade tenho mais medo de perdê- lo e ficar só, do que amor por ele.

Ao dar a seta e virar com o carro, Edu se depara com uma blitz dos dois lados da avenida, os policiais estão parando carro por carro. Edu muda de fisionomia instantaneamente, fica pálido, tenta não demonstrar seu nervosismo. E diz:

- Nossa blitz aqui, acho que vamos acabar demorando mais que o esperado. Diz Edu, tentando não parecer nervoso.

- Ah não acredito. Diz Gabriela.

Ainda na fila para passar pela blitz, Edu vê Gabriela cabisbaixa e diz:

- Bom pelo que você falou, não acho que você o ame, você é jovem, bonita e inteligente, se você largá-lo, vai arrumar alguém facilmente e se não arrumar rápido ganhará experiência para a sua vida, mas um conselho que eu te dou, não deixe seu medo de ficar só te dominar, pois existe uma linha tênue que divide o altruísmo e o egoísmo.

Gabriela fica espantada pelas palavras, a fila anda e chega a vez de Edu, o policial se aproximando do carro e pergunta:

Tão indo "pra" onde?

Sou motorista de aplicativo, só vou deixar ela no destino. No edifício Lisboa.

- Ok, só me da seu sua habilitação e o documento do carro.

Edu entrega os documentos naturalmente, tenta não mostrar nervosismo, até porque os documentos são originais e Jefferson e Edu têm fisionomias parecidas.

Edu olha para Gabriela que está de cabeça baixa e pergunta:

Está tudo bem? Desculpa não queria te magoar ou ser grosseiro com você.

Gabriela levanta a cabeça lentamente olha para Edu e diz:

Você tem razão, já estava a algum tempo pensando em deixá-lo, eu sou nova, inteligente, bonita e tenho muita capacidade, nao posso deixar meu medo de ficar só me dominar e eu apenas obedecer, tenho que tomar uma atitude e é isso que vou fazer.

Os policiais estão conversando no rádio, com a habilitação e o documento do carro que Edu dirige em mãos. Edu vai ficando nervoso, até que Gabriela diz:

Nossa que demora, já volto. Abre a porta do carro e vai em direção ao policial que está com os documentos em mão, Eduardo já não sabe mais o que fazer, soa frio.

O policial e Gabriela vem caminhando em direção ao carro, então o policial devolve os documentos para Edu, e diz:

Jefferson boa viagem e bom trabalho, tchau doutora.

Edu ainda surpreso sem entender muita coisa sai lentamente da blitz, e pergunta:

- Para onde vamos agora?

- Estou mudando o endereço no aplicativo. Diz Gabriela.

Edu recebe a nova rota e segue, Gabriela pega o celular e liga, porém não é atendida. Começa então a gravar uma mensagem de áudio no celular:

- Fica tranquilo, não vou fazer nenhum barraco no seu prédio, segunda feira nos falamos no trabalho, não vou te perturbar, eu tenho meu valor, na verdade estava sendo refém do meu egoísmo que estava camuflado em algum sentimento que aparentava ser mais bonito, mas na verdade não é! Era meu puro egoísmo e medo de ficar só que me dominava e alimentava ainda mais esse ciclo vicioso ao qual eu agora me arrependo e envergonho profundamente. Ah pode acabar com a blitz que você mandou montar pelo caminho que eu faço. Tenha um bom fim de semana!

Eduardo fica espantado ao ouvir e associar toda a história, o caminho segue, o silêncio toma conta do carro novamente.

Chegam no local de destino de Gabriela, um barzinho nobre, tocando MPB. Então Gabriela diz:

- Espero que a decisão que você tomou baseada em outra pessoa, não seja parecida com a minha.

Edu apenas dá um sorriso, Gabriela o agradece e desce do carro.

Edu prontamente recebe uma notificação em seu celular para mais uma corrida, aceita rapidamente e durante o percurso para pegar o novo passageiro ainda lembra da história que vivenciou. E por um instante compara sua história com a de Gabriela, e pensa: “Estou realmente fazendo isso por amor ao meu filho ou apenas fazendo isso pela minha liberdade? Se eu não tivesse filho, eu procuraria outra desculpa? Será que estou camuflando meu egoísmo sustentando a idéia de que quero ver meu filho crescer apenas para ter a minha liberdade? Afinal de contas, como motorista de aplicativo já não tenho muito tempo disponível para ficar com meu filho…”

Edu fica atordoado pensando, imaginando, criando mil outras possibilidades até que vê um rapaz com o celular na mão e o braço estirado, Edu para o carro, liga o pisca alerta, e o rapaz diz:

- Jefferson né?

- Isso. Responde Edu.

- Ok “Vamo” lá cara, to com pressa.

Uma nova conversa se inicia, os pensamentos ainda permanecem em Edu, que sabe só irá chegar a uma resposta depois de muitas e muitas viagens.