Que Bandido Sou Eu?
Ao cair da tarde ele chegou em casa, como de costume. Estacionou o carro, cumprimentou o porteiro e pegou a sua correspondência no escaninho instalado no piso térreo do edifício. No conjunto daqueles envelopes, entre contas, propagandas e extratos, encontrou uma carta manuscrita a ele endereçada. Chamou-lhe a atenção de imediato, já que são raras, atualmente, as missivas ao estilo antigo, em envelopes de tarja verde e amarela, grafados a caneta, e selos dos correios colados com o carimbo especificando a agência em que foi postada.
Um misto de saudosismo e curiosidade imediatamente lhe assomou. No verso do envelope encontrou a identificação do remetente, seu sincero e cordial amigo. Mandava a carta desde um complexo penal. Ele estava preso há algum tempo e, desde então, não tivera notícias precisas sobre a sua situação. O pouco que sabia era de alguns amigos comuns e, eventualmente, do seu advogado, um conhecido que frequentava os mesmos lugares que ele. A curiosidade e a saudade logo manifestaram a subida do tom.
Da inteligência do amigo sabia que naquele envelope haveria fecundas observações sobre as circunstâncias que o cercavam e que aquela leitura teria que ser feita com calma. Ao entrar no apartamento, serviu-se do seu drinque predileto e acostou-se na poltrona. Abriu o envelope e nas folhas pautadas de um caderno preenchidas a caneta azul logo divisou um carimbo redondo escrito “censura”. Sinal de que a correspondência dos internos era lida e considerada apta para o envio antes de ser postada.
Estranho o procedimento, ele considerou, já que o termo soou-lhe anacrônico, posto, ainda, que a propriedade intelectual do indivíduo jamais poderá ser aprisionada. A privação da liberdade é tão somente corpórea, impossível encarcerar uma mente sadia. Imediatamente lembrou-se de Machado de Assis: “de tudo podem me privar, das ideias é que não”.
Já instalado confortavelmente organizou as folhas e iniciou a leitura, que assim se deu:
“Que bandido sou eu?
“Fale-me, dileto amigo, que agora me lê. Preciso da tua avaliação, teu parecer sincero. Pretendo deixar de lado a tecnicalidade jurídica, já tenho suficientes opiniões profissionais de expertos no Direito.
“Que bandido sou eu?
“Não vou te pedir para te aprofundares nos meus autos processuais, nem te aculturares na ciência das leis. Só se acaso quiseres deixo disponível as acusações que me imputaram, as defesas interpostas, os decretos que sofri, está tudo lá, com todas as argumentações de lá e cá. Ficamos assim se sentires necessidade de embasar melhor a opinião que te peço com tanta avidez; sim, a desejo vorazmente.
“Que bandido sou eu?
“O que te rogo é o juízo, não técnico, do ser humano de bom senso, que entende as gradações da vida, conhece a maneira como se pode querer interpretar as palavras para se atingir o que quer que se queira, conhece a bondade e a maldade humanas, e por tudo isso sabe identificar as subjetividades que movem ações do homem.
“Que bandido sou eu?
“Fale-me, amigo, mesmo sem teres formação nas disciplinas psicológicas, és pessoa intuitivamente experimentada o suficiente para opinares sobre a minha questão, com a superficialidade de quem não se compromete em registrar-se como especialista, nem dar fé pública a um pouco mais que um palpite?
“Que bandido sou eu, que é preso ainda durante a investigação, antes de a Polícia Federal elaborar o seu relatório?
“Entendo minha prisão inútil pois todo o restante da investigação da polícia se deu na análise do material apreendido nos meus endereços, podia eu estar na carceragem ou acompanhando a sessão de quimioterapia da minha mãe. Até meu depoimento foi tomado no último dia do prazo deles, um mês preso completamente parado. Prisão inútil, desnecessária e ilegal, pelo menos no nosso ponto de vista ao analisar o decreto prisional. A não ser que eu não esteja sabendo de algo que eu não sei que não vejo. Ajuda!
“Que bandido sou eu que, depois da denúncia oferecida pelo Ministério Público e a aceitação pelo juízo, não tem o direito de responder ao processo em liberdade?
“Essa rubrica de risco à ordem pública, que nela tudo cabe a julgo do homem de preto, faz dizer que posso (ou não) coagir testemunhas, posso (ou não) fugir do país, posso (ou não) delinquir novamente, posso (ou não) qualquer coisa. Há um natural cerceamento de defesa nesta situação. Ao que se refere a mim por mim mesmo, pessoa enquanto não bandida e não sentenciada continuo vendo inutilidade, desnecessidade e ilegalidade na minha prisão. A não ser que eu não esteja sabendo de algo que eu não sei que não vejo.
“Que bandido sou eu que, depois da instrução do processo encerrada, não tem o direito de ter a prisão relaxada?
“Pois nada mais há que incomodar o processo em si e os tão sensíveis procuradores que, à mínima voz levantada gritam o molesto de sua praia invadida. Aquele infinito escaninho chamado risco à ordem pública continua a ser depositário dos motivos definitivos.
“Que bandido sou eu que ao receber a sentença de primeira instância não tem o direito de recorrer da mesma em liberdade?
“Posto está que a Constituição Federal me faculta o direito de discordar da decisão de um juiz e recorrer aos tribunais, não é assim? Em não estando condenado em definitivo, por que estar preso? A Constituição não diz?
“Que bandido sou eu?
“Que bandido sou eu que não merece ter os direitos constitucionais de presunção de inocência e de liberdade até o trânsito em julgado – ou, vá lá, 2ª instância – respeitado?
“Diga-me, amigo, com tua lucidez transparente, diga-me com tua facilidade de ser entendido o que para mim transformou-se num cenário trevoso. Ser um risco à sociedade embuça-me a mente. Diga-me, diga-me.
“Que bandido sou eu que não merece ter um habeas corpus julgado?
“Como é possível que o instrumento que deveria garantir o pronto restabelecimento de direitos constitucionais leve prazo maior que o próprio processo que se sofre? Vá lá e veja o que diz a Constituição. Socorra-me amigo, com tua clarividência. Talvez já me turve a visão.
“Que bandido sou eu que me obrigam cumprir antecipadamente uma pena?
“Com o descalabro da prisão preventiva que se perpetua, a execução da pena imposta pela sentença em primeira instância torna-se inexorável. Sem qualquer revisão ou reforma, sem qualquer análise recursal. Sem direito a apelar, à reclamação. É pena antecipada. E chega-se ao absurdo de se cumprir o regime fechado e se chegar à progressão de regime ainda em preventiva, como a prática confirmou.
“Que bandido sou eu que, estando preso preventivamente, recebe outro decreto de prisão preventiva?
“Caro amigo, confesso que fico agora realmente preocupado se mereço saber quem sou realmente. Por favor, seja um pouco engenheiro humanista e me faça alguns cálculos e cômputos. Dimensione a minha periculosidade. Faça uma análise de riscos. Essa metástase da garantia da ordem é ação mitigadora adequada ou é desproporção da medida que está a ser elevada à máxima potência? Questão de prova. Juro que ainda via inutilidade e desnecessidade. A não ser...
“Afinal, que bandido sou eu?
“Quem ou o que se protege com a minha prisão preventiva? Ou trata-se de um constrangimento ilegal? Penso. Sendo eu um risco à ordem pública a minha prisão é uma medida cautelar como forma de controle de comportamento em âmbito social, é certo afirmar isto? Pretende-se então, impor um comportamento padronizado, pode-se asseverar? Medida que pune quem contraria ou pode contrariar o padrão, correto? Logo, esse método de contenção é um instrumento de política de controle social.
“Este é um perigo real e importante, pensamento que pode ser expandido a outras cenas, se concordarmos que algo está estranho no ambiente judiciário. O homem que decretou a minha prisão está investido de grande poder e tem o hábito de comandar. Ele está corrompido por esses encargos e supervaloriza os seus próprios méritos pessoais. Este perfil de comportamento é suficientemente discorrido por diversos pensadores ao longo dos séculos da nossa história.
“Meu mui querido amigo, não cheguei até aqui para encerrar uma explicação, ao contrário, pois tudo isso poderia fazer sentido se eu tivesse uma boa definição de mim mesmo, o que neste momento nunca estive tão longe de ter. Todo este ataque estatal deixou-me repleto de incertezas. Falta-me cognição. A sumária já é bastante para me acusar e a todos fazer crer do meu suposto grave risco. Por isso, amigo, todo o exposto vem a suplicar que me elucides. No espaço provisório que habito vou até a pia onde o pequeno espelho instalado acima, sempre que chego, apresenta o reflexo que me pergunta:
“Que bandido sou eu?”