A MORTE DO ELEFANTE
A morte do elefante
“Não é todo dia que freguês anão entra neste meu botequim. Aliás, acho que nunca apareceu nenhum aqui”. Giovana, a poucos metros, sentada por trás da caixa registradora e a poucos metros de seu marido Nico, dono do Bar e Restaurante Il Siciliano, não precisou olhar para ele para ter o mesmo pensamento. Lolita e Barnabé, cabeças baixas com ensaios de sorrisos humildes nas pequenas e proporcionais bocas, a passos ligeiros e de resto também pequenos se encaminham para tomar posse da mesa vazia mais próxima, vazia como as demais em hora de fechar o estabelecimento.
Os passos de Nico desde que largou a lavagem de alguns talheres, passou por trás da atenta e curiosa Giovana quanto ao que ele dirá ao insólito casal de intempestivos fregueses, até o instante em que afinal se põe em caprichada pose de atencioso atendente do Il Siciliano foram até então demorados, pesados como se em cada pé ele carregasse uma sapata de concreto motivados pela delicadeza do inesperado episódio — como explicar ao casal de anões que o serviço do bar já está encerrado, sem contudo lhes parecer na prática um ato discriminatório, racista ou coisa condenável de um vivente praticar em uma sociedade tão vigilante a respeito
nos dias atuais? Em sua nuca enfeitada por cabelos negros e longos arrebanhados por um elástico, pressente o olhar vigilante e curioso de Giovana, lá no caixa, dentro daquele cubo de vidro em cuja base disputam lugar isqueiros, drops de variados sabores e isqueiros de plástico.
— Hã..., boa noite. Os senhores me desculpem, mas estamos fechando. — ele diz, palavras antecedidas pelo sempre aplicável limpar de garganta em hipóteses as mais variadas.
Barnabé, o anão, já anteriormente identificado por tal nome, elevou o pequenino e peludo antebraço esquerdo para melhor observar seu modesto relógio de pulso. A acompanhante dele, acima batizada pelo autor como Lolita, deu um ligeiro torção em seus infantis ombros para endereçar a Nico um azul de enormes olhos emoldurados pelas pesadas pálpebras de cílios postiços pulsantes como as asas de um pequeno pássaro perdido.
— Fechado mesmo, meu senhor? — diz ela numa voz rouca transbordante de desânimo e que a Nico soa com um leve sotaque estrangeiro.
Ele assente com um leve aceno de cabeça. Barnabé tira por instantes seu largo boné de napa marrom, dotado de pequena aba e semelhante a um bolo achatado sobre o grande crânio coberto de fios longos que lhe ocultam as orelhas, salvo um pequeno brinco dourado à direita.
— Nós entendemos, meu senhor, mas não podia abrir uma exceção pra nós, qualquer sanduíche sabe? Eu e minha esposa aqui trabalhamos naquele circo, o senhor com certeza já viu, montado a dois quarteirões daqui no campo de futebol.
Nico coça a cabeça, transfere num gesto rápido do ombro esquerdo para o direito o pequeno pano-de-prato e se volta para observar Giovana, agora fora do seu cubículo envidraçado.
— Tem sim, Nico. É o Gran Circo Universal. Não viu ainda, não? Estão lá, logo depois da Mendes de Moraes. — Giovana diz enquanto se aproxima de olhos curiosos, observada pelo casal.
Nico encolhe os ombros.
— Sei lá. Pois olhe que nunca reparei nisso, acredita? — diz ele.
Giovana se põe ao lado de Nico, ombro a ombro.
— É que não temos criança em casa. O trabalho aqui é duro, não temos tempo para nada. Circo eu só fui quando menina, acreditem. — ela diz de um modo de parecer aos anões se desculpar porque Nico ignora a existência de um circo nas cercanias do bar.
— Viemos de lá agora. O circo teve que suspender tudo no meio do espetáculo e tivemos de sair de lá só com dinheiro pruns sanduíches. Uma merda! Desculpem. — diz Barnabé, suas palavras agora também percebidas por Giovana como ressonantes a algum falar misturado ao português, embora menos que as de Lolita, ao tempo em que ele cruza os braços e balança a cabeça negativamente, com o olhar perdido em qualquer ponto do piso de ladrilhos em branco e preto.
— A gente sabe que os senhores não têm nada com isso. O dono do circo paga a gente por dia, mas hoje não deu. — diz Giovana. Ela estica o curto braço para alcançar a mão de Barnabé e acariciá-lo com seus dedinhos defeituosos.
Nico e Giovana trocam olhares. Ele, discretamente, consulta o relógio do bar acima das prateleiras de bebidas.
— Bom, a gente pode quebrar o galho de vocês, coisa rápida... — Nico, agitado, volta a trocar de ombro o úmido pano-de-prato. — Mas por que ele não pagou? Ele não é o patrão de vocês?
— Por causa do elefante. — Lolita diz, tendo ainda a mão de Barnabé presa entre os seus dedos.
— O que é que tem o elefante? — Nico e Giovana misturam suas vozes na mesma indagação assustada.
— Ele morreu, morreu logo que começou a função. — Barnabé diz ainda de olhos no chão, só por isso sem ver que Giovana, de pé por trás de Lolita e de frente para ele, esconde atrás da mão um sorriso de alegre surpresa, diversão e incredulidade associado ao brilho de uns olhos faiscantes, tudo como os da criança que no circo assiste aos truques do mágico.
Nico, antes de falar, endereça um olhar de reprimenda à mulher.
— O elefante morreu?
— Veio com a gente desde a Europa — Barnabé diz com tristeza e recolhe a mão direita de Lolita entre as suas.
— Europa? — diz a ainda assustada e discretamente divertida Giovana.
— Romênia. — diz Barnabé baixo, tristonho.
— A gente é de lá. Nunca aconteceu coisa assim. — diz Lolita pondo o rosto entre as mãos em flagrante desânimo, os cotovelos fincados na mesa.
— Ro-mê-ni-a! Isso é muito chão até aqui, não? Fica perto da Rússia, né? — diz Giovana de olhos arregalados em busca da explicação geográfica.
— Europa Central. —Lolita ergue a cabeça e dá um jeito no tronco em busca dos olhos de Giovana, esperançosa de que haja dado a resposta adequada. Nico, em passos rápidos, se encaminha rumo à porta do estabelecimento e fala em palavras altas e incisivas. — Deixa eu abaixar a porta. Vê então o que pode ajeitar pra eles, Giovana. Já era tempo da gente estar chegando em casa. — Suas palavras se misturam com os ruídos da pesada porta de aço corrugado sendo abaixada, misturados à descarga do motor de uma motocicleta.
— Bom, se vocês quiserem, a gente faz um hamburguer pra cada um. Está bem assim? — Giovana diz esperançosa pelos olhos em ser ouvida por Nico lá adiante, mais ocupado em trancar a larga porta, de cócoras e parcialmente visto por ela na calçada, sua figura de largos ombros apenas meio que revelada pelo vão ao centro da porta, destinado unicamente à passagem de uma pessoa de cada vez.
— Hamburger?— Barnabé diz e mexe no bolso do peito da surrada camisa esporte listrada, dali extraindo, misturadas a alguns cartões e ao que parece ser uma carteira de identidade, algumas notas de reais que separa sobre o oleado verde que forra a mesa, sob o vigilante e apreensivo olhar de Lolita.
É ela quem se dirige a Giovana.
— E quanto dá dois hambuguer e.. e dois refrescos?
— Não trabalhamos com refrescos, desculpem, mas só sucos feitos na hora, refrigerante, ou cerveja. — diz Giovana.
Barnabé e Lolita se entreolham por bons segundos com caretas e coçares de cabeça.
— Humm..., e só dois hamburgers? — vem afinal um pronunciamento, este na voz de Barnabé, que estica e separa com atenção as cédulas em cima da mesa.
— Só os dois sanduíches? Vinte e três reais e noventa e cinco. Onze e noventa e oito cada. — diz Giovana, agora dando um jeito na coluna a fim de se mostrar mais ereta diante deles dois e possivelmente, como acredita, causar alguma impressão de pressa.
— E aí, foi decidido alguma coisa? — diz Nico em retornando da porta, com os olhos em Giovana, agora sem ocultar sua impaciência.
— Eles querem um hamburguer. Deixa que eu preparo. Vai encerrando tudo.
— Um? Um hamburguer? Vai, vai, deixa que eu faço. Vê lá nos fundos se está tudo okay, apagado... — Nico não esconde sua irritação, mal olhando para o minúsculo casal de fregueses.
Barnabé e Lolita se entreolham por um largo tempo, praticamente imóveis, seus diminutos torsos colados na beirada da mesa, com os pensamentos focados em encontrar amanhã bem cedinho, antes que o dono do circo tenha mandado remover, ou pior, retalhar o falecido elefante, uma loja de flores onde possam comprar bonitas rosas com o dinheiro não gastado aqui num lanche mais substancioso, para com elas enfeitar o finado colega de espetáculos do Gran Circo Universal.