Enchente

Permitiu-se relaxar pela primeira vez em dias, ao ouvir o noticiário no rádio de que as chuvas na cabeceira do rio haviam cessado, e que portanto a enchente começaria a retroceder. Ao redor da casa que dominava o alto de uma rua, agora praticamente convertida numa ilha, estendia-se o que parecia ser um mar de água barrenta de onde emergiam telhados, postes, copas de árvores com peças de mobiliário presas como broches, e andares superiores dos poucos prédios da cidade.

Estava sem energia e telefone há dias, e água, só o que conseguira recolher da chuva, após a água da caixa ter acabado. Em último caso, pensou, teria que se arriscar a buscar água do rio na parte baixa da rua, e ferver para beber. Mas, mesmo sair de casa andava arriscado. Animais de todo o tipo estavam circulando por aquela ponta emersa, assustados e famintos. Cães, gatos, mas também galinhas, patos e cobras.

Felizmente, havia feito as compras do mês cerca de dois dias antes da inundação, e o que tinha na despensa lhe permitiria passar ainda mais uma ou duas semanas de isolamento, caso racionasse a comida. Até lá, provavelmente o rio já teria voltado à calha e poderia sair para fazer compras no município vizinho.

Na falta de pão, havia tomado café com pipocas naquela manhã enevoada, e segurando a caneca com as mãos engorduradas, contemplou do terraço o cenário de desolação abaixo dele. O governo nunca controlara o desmatamento nas cabeceiras do rio e parece que a natureza arranjara um jeito de se vingar. A maioria dos moradores das áreas mais baixas já havia percebido isso há algum tempo, e a cidade vinha gradualmente sendo esvaziada, ano após ano. Ele, contudo, resistia. Morava num lugar alto, que considerava como seu pequeno paraíso.

Um paraíso o qual, como na história bíblica, agora também era habitado por cobras. Não podia esquecer-se.

- [04-07-2020]