Velha nostalgia
Tudo começou com a campainha tocando, um jovem militar usando um tipo de farda que me parecia de gala e jeito todo robusto de falar, ao me identificar ele autenticou e pediu para que eu assinasse em uma folha branca, com o brasão do governo timbrado, imagino que vá parecer estranho, mas a única coisa que talvez conseguisse pensar naquele momento era se alguém da minha família, algum parente distante e pertencente ao exército poderia ter morrido em alguma missão secreta ou coisa do tipo.
Recebi um envelope contendo um convite embrulhado num papel pardo e um lacre que rompi na hora tamanha minha curiosidade, não sou expert em papel, mas nem precisava para perceber a qualidade empregada ali “Senhor Carlos é com imenso prazer que o senhor é um dos convidados a participar da bancada de jurados do 3º Encontro de Arte Contemporânea” em letras miúdas havia algumas observações, eu poderia levar um acompanhante e a obrigatoriedade de usar trajes sociais.
-Vô eu fui convidado para ser jurado do encontro de arte. Eu disse animado e já pensando na roupa que alugaria.
-E o que você entende de arte Carlinhos. Meu avô não era mais um sinônimo de empolgação.
-Vô não precisa entender tanto assim, é uma votação do povo. Não era mentira aliás o encontro de arte contemporânea consistia em pessoas comuns votarem no que seria o próximo padrão de arte da próxima década.
-Entendi filho.
-Vô eu gostaria que o senhor fosse comigo o que o senhor acha? Talvez ele nem percebesse, mas estava sempre falando do seu tempo, uma época em que andavam usando roupas coloridas, as pessoas faziam piada e achavam graça de criticar a tudo que não acreditavam,
-Tá bom eu vou, mas não vou alugar roupa alguma.
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Já se aproximava das 18 horas quando chegamos à loja de roupas, os estabelecimentos fechavam as 19 religiosamente, não que houvessem crimes, desde a lei de crime zero, vivíamos sem preocupação, era como se existissem câmeras por todos os lados e na verdade tinham, porém as pessoas se habituaram com toda aquela vigilância, a assistirem o pronunciamento oficial e a dizer que era a melhor época vivida em anos.
-Eu falei para o senhor, quase não deu tempo.
-Sabe Carlinhos eu costumava a vir nessa rua quando tinha sua idade, no lugar daquele restaurante vegetariano, existia um clube de dança, ficávamos ate altas horas você precisava ver como era divertido este lugar.
-Vô o senhor às vezes não parece entender o perigo que vivia, já pesquisei o tamanho da taxa de homicídios e não é possível que o senhor sinta falta daquilo, alguma vez o senhor já parou para pensar em como vivemos seguros hoje em dia?
-A troco de que? Tenho certeza que não foi a única vez que vi no olhar dele aquela tristeza, mas é a imagem que lembro sempre que penso nele.
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Faltava apenas dois dias para o evento e eu não aguentava mais ler sobre arte, sobre a responsabilidade que carregávamos, alias éramos nós, uma pequena minoria responsável por representar a vontade de milhares, eu daria o meu melhor e tinha certeza disso, era até que natural, na escola éramos condicionados a encontrar o melhor para o senso comum, dentre as atividades em grupo uma delas era repetida a exaustão, era dividida duas equipes e cada uma deveria adivinhar qual era a escolha da equipe adversária, mesclávamos com as opções mais banais como sabor de suco, cor da escola, até temas como filmes, política e individualidades, não tinha como eu errar o que esperavam de mim, eu fiz isso à minha vida toda.
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Costumávamos jantar em família antes de nos reunirmos na sala, meu avô como sempre era o último a se juntar a mesa, ele dizia que antigamente cada um comia onde bem quisesse, mas duvido que a maioria das coisas que ele diz fosse realmente verdade.
-Pai o senhor está ansioso?- Meu pai e meu avô são a síntese de duas épocas distintas, enquanto um tinha passado por toda a mudança estrutural, meu pai nos criou conforme as normas de uma sociedade justa, correta e aliada à verdade, meu pai sentia dó do modo ultrapassado que meu avô cultivava ainda, mas eu sabia assim como todos naquela mesa que ele era apenas um senhor.
– Sabe filho eu acho que vai ser bom, faz tanto tempo que não vejo nada de novo.
Quando nos sentamos na sala para o pronunciamento oficial que começou de forma pontual como sempre o homem da televisão, aquele que herdou do seu pai a árdua missão de nos guiar dizia com enorme prazer e seriedade, uma espécie de relatório do nosso dia “Comunico a vocês que foi sanado hoje dois pontos de desordem, faço aqui meus agradecimentos às denúncias e dizer que vocês são o elo mais forte desta nação, obrigado, tenham um bom descanso e que Deus os abençoe”.
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A cerimonia era sempre realizada no palácio da justiça, uma construção antiga feita nas primeiras guerras, mas tombada como patrimônio histórico a nem tanto tempo assim, o salão era realmente luxuoso, no palco eu conseguia enxergar meu avô nas fileiras de convidados e aos poucos diversas autoridades chegavam, vindos de todas as partes do país todos se cumprimentavam igualmente. Na bancada junto comigo estávamos todos usando ternos pretos e camisas brancas, éramos em aproximadamente 30 homens ali com a missão de representar a vontade de pessoas iguais a nós. Fomos apresentados a três obras, em uma delas havia numa tela branca um círculo vermelho ao centro, na outra a imagem era semelhante, mas as cores se substituíam e ao invés do branco havia no vermelho de fundo e o círculo branco, a terceira obra era uma tela negra com círculo em vermelho, a votação foi unânime e estava decidido o que seria arte na próxima década, então os poucos convidados foram chamados para admirar a nova imagem e conceito a ser admirado.
Meu avô ao se aproximar da peça tirou dois tubos de tinta do bolso como ele conseguiu entrar com aquilo eu nunca descobri, talvez um idoso não representasse ameaça num mundo civilizado como o nosso, ele começou a jogar de forma aleatória aquela tinta no quadro e gritava com a pouca energia que ainda lhe restava “Ninguém decide o que é arte, vocês não decidem o que é a vida, vocês são a hipocrisia escrota embrulhada num papel de seda” os seguranças levaram ele dali, mas naquele momento todas as redes de televisão já haviam registrado mesmo sem querer aquele velho senhor histérico dando seus últimos sopros.
Eu nunca mais vi meu avô e preferimos não comentar sobre ele no jantar, eu só queria que ele entendesse como a vida é melhor para todos.
-Carlos vai começar o pronunciamento vem logo
-Tá bom pai.