O dia mais triste
Na altura dos seus setenta anos era meu avô um homem de físico vigoroso e porte altivo. Calvo nas têmporas, rareavam-lhe as cãs no topo da cabeça – fios esparsos e curtos mal cobriam as manchas vermelho-amarronzadas que lha salpicavam. Dizia-nos ele, para mim e para seus outros netos, que tais manchas eram sujeirinhas que os anjinhos, peraltas e traquinas, arremessavam, do céu, para a Terra, para irritar os velhinhos.
Tinha um hábito meu avô: Sempre que íamos passear, antes de se retirar da sua casa, enchia ele o bolso esquerdo da camisa com balas, para distribuí-las para as crianças.
Certo dia, perguntei-lhe:
– Vovô, por que o senhor põe as balas no bolso esquerdo, e não no bolso direito?
E respondeu-me ele com a serenidade costumeira:
– Para as balas ficarem mais perto do coração.
Satisfiz-me com a resposta, que me agradou, animou-me, e sorri.
Embora mal chegado aos seis anos, tinha eu sensibilidade para captar os sentimentos que as palavras de meu avô traduziam.
Um dia, entristeceu-se meu avô. Que dia? Não me recordo. A minha memória não me permite evocar, com exatidão, o dia, a hora, o local em que se deu o evento que entristeceu meu avô. E tais detalhes são irrelevantes. Relevante foi o que se sucedeu, naquele dia, idos, já, trinta anos. Gravei, no recanto mais fundo da minha alma, os detalhes essenciais.
Estava meu avô, como lhe era hábito, vestido de calça social preta, sapatos pretos e camisa branca de dois bolsos, o bolso esquerdo estufado de balas, e meu avô esvaziava-o aos poucos, tirando uma bala, para dá-la a uma criança, e outra bala, para dá-la à outra criança… E repetia meu avô o ritual: Saudava a criança, perguntava-lhe o nome, perguntava-lhe se era ela obediente, passeava-lhe a mão direita pela cabeça, ajeitava-lhe os cabelos, fazia-lhe graça no queixo, e presenteava-a com uma bala, e brilhavam os olhos da criança e os de meu avô, que irradiava felicidade, como se admirasse um anjo.
Estava, já, quase vazio o bolso esquerdo da camisa de meu avô, quando, após atravessarmos a rua, aproximou-se meu avô de um menino de três, talvez quatro, anos, e uma mulher, sua mãe, e meu avô, ao mesmo tempo em que enfiava a mão esquerda no bolso esquerdo da camisa para dele tirar uma bala, e estendia a mão direita na direção da cabeça do menino, e abria a boca para perguntar ao menino o nome, o menino, cenho franzido, olhar maldoso, fitou meu avô, e disparou, ríspido, destilando ódio:
– Fidaputa!
Uma flecha envenenada alvejou, no coração, meu avô, que se petrificou e empalideceu, estupidificado. Não conseguiu meu avô recompor-se; conservou-se ele inclinado para a frente, a mão esquerda dentro do bolso esquerdo da camisa, o braço direito estendido na direção do menino, os dedos quase lhe tocando a cabeça, e, na boca entreaberta, presas, as palavras.
– Fidaputa! – repetiu, olhos fixo em meu avô, o menino, num tom mais elevado, e firme, e cortante.
E a mãe do menino, curvando-se, aproximou sua cabeça da dele, e pousou-lhe, nas costas, intimidada, e cautelosamente, a mão esquerda, e disse-lhe, constrangida, voz débil, como a suplicar-lhe:
– Querido, não fale assim com o vovozinho. Você é um menino bonzinho.
Enquanto assim dirigia-se a mulher ao seu filho, meu avô recompôs-se, de dentro do bolso esquerdo da camisa tirou a mão esquerda vazia, e recolheu o braço direito, sem desviar o olhar; olhava, entristecido, rosto lívido, sentindo profunda dor no peito, para o menino.
Senti cessar o coração de meu avô.
– Querido, diga bom-dia para o vovozinho – suplicou a mãe ao menino.
– Fidaputa! – proferiu o menino, firme, a acutilar meu avô com aquele olhar diabólico, que gelou-me a espinha.
– Não diga isso, querido – suplicou-lhe a mãe, em tom débil, servil. – Seja bonzinho.
– Não! – respondeu-lhe o menino, ao mesmo tempo em que desferiu-lhe um tapa no rosto.
E a mãe massageou o rosto, fitando, com olhar servil, amedrontado, seu filho; curvada, pegou-lhe as mãos, e disse-lhe, em tom débil, a suplicar-lhe que andasse.
O menino, ao dar os primeiros passos, sobrancelhas dobradas sobre os olhos, então no fundo de crateras abismais, que lhe emprestavam ao rosto o semblante de um demônio, fitou meu avô, e rosnou, cavernoso:
– Fidaputa!
E afastaram-se de meu avô e de mim a mãe e seu filho.
Encheram-se de lágrimas os olhos de meu avô, e um fio de lágrimas, que reluziu à luz do Sol, escorreu-lhe do olho esquerdo, e caiu-lhe dentro do bolso esquerdo da camisa.
Segurei a mão de meu avô, e apertei-lha, firmemente, para ampará-lo.
E rumamos para casa, a passos lentos, meu avô cabisbaixo, e eu a fitá-lo a curtos intervalos, e ler-lhe no semblante dor profunda.
Passados, já, trinta anos, falecido meu avô a dezesseis, sempre que deste episódio me recordo, pergunto-me: Quem merecia ouvir censuras, o menino, ou sua mãe?