Vinhos e Governos
O grupo de amigos conversava animadamente em torno da mesa onde se degustavam vinhos e acepipes. E, aliás, o lugar era um reduto tradicional no centro do Rio de Janeiro, um dos resistentes baluartes de um período clássico e glamoroso.
No cardápio dos seus encontros também havia as discussões do cotidiano e das coisas mundanas, ah!, que belo era o tempo despendido em profícuas conversas e interlocuções inteligentes. A energia renovada era sempre um alento à cultura de cada um.
Amigos, que compartilham das mesmas afinidades com as coisas boas da vida. Assim como, entre eles, os prazeres de Baco. Não era incomum que, pela sua visão de alegria e bom humor perante o mundo, agudos observadores do cotidiano como eram, as pessoas normalmente os chamarem de epicuristas. Com efeito, era a sua visão de uma vida prazerosa e divertida que os faziam comungar em tantas questões da vida e do “savoir vivre”.
A menos de uma ou outra visão política da atualidade, tão comum nesses tempos em que a polarização neste tema chegou mesmo a arranhar amizades e até mesmo relacionamentos familiares. Falta mesmo um melhor senso crítico para a maior parte das pessoas, na medida em que se permitam as diferenças com harmonia, pois o que grassa na dita opinião publicada é a manipulação dos indivíduos e a falta de construção do pensamento independente.
No entanto não era o que se dava com aquele grupo de amigos. Todos tinham as suas próprias opiniões e as suas abordagens sobre os temas da atualidade que vinham, normalmente, acompanhadas de bons fundamentos. Naquele dia o assunto em pauta era a política do governo, notadamente as questões sociais e econômicas que vinham sendo encaminhadas.
Sempre que se chega ao fim de uma garrafa, apresenta-se o instante da escolha de uma nova. As inúmeras possibilidades também fazem emergir uma bela e rendosa discussão. Dentre as alternativas da carta acaba-se repetindo o vinho anterior ou se escolhendo uma novidade. Não importa, realmente, foi a troca de experiências e de argumentos que enriqueceu, um pouco, a cultura vitivinícola de cada um.
Naquela mesa, entre prós e contras discutidos por eles sobre a atualidade, havia sempre o pano de fundo das ideologias de governo. Por entre a matriz de complexidade e da atratividade do assunto, acabou por ser colocada a questão em que a faca analítica, em determinado momento, traça a linha que separa os que estão tendendo a um lado dos que guinam a outro: “você prefere um governo de direita ou um governo de esquerda?”.
Na sequência entre um gole e outro do vinho que foi ora aberto para o desfrute dos amigos, sempre com aquele cuidado de sentir primeiro as moléculas voláteis que formam o seu conjunto de aromas e o percorrer do líquido por entre as papilas gustativas, surge recorrentemente as questões sobre as preferências: “que tipo de uva você prefere?”.
Um dos amigos já se coloca como um adepto da direita liberal, pois para ele importa a eficiência e a meritocracia. Aqueles que melhor trabalham, é justo merecerem o seu desenvolvimento pessoal diferenciado. E assim ele próprio se vê.
Também é comum se perguntar qual é o país da sua preferência em termos de produção de vinhos. “Você gosta de vinho chileno ou de vinho argentino?”. “Italiano ou português; californiano ou neozelandês, no novo mundo”? Interessante que esse tipo de pergunta muito pouco serve a consubstanciar os tipos de predileção, estima ou prioridade.
Um outro amigo, apesar de ser um profissional bem conceituado e reconhecido no mundo corporativo, aponta a sua preferência por um sistema de governo mais progressista, pois gostaria de ver as desigualdades sociais tratadas por alguma entidade governamental, já que o mercado não o faria por pressupostos intrínsecos a ele.
Por trás das perguntas da origem estão, por óbvio, as castas mais populares naquele lugar. Há perguntas do tipo se a preferência é por um vinho mais frutado ou de cunho herbáceo. Aqui também vamos reduzir a questão para o tipo de uva. “Cabernet Sauvignon, Malbec, Shiraz, Merlot, do que você gosta”?
Alguém faz uma pergunta capciosa: se, por exemplo, na Suécia tem-se um governo de direita ou de esquerda? A astúcia não procurava confundir, antes chamar a atenção para os paradoxos das clássicas classificações. Entre os amigos havia um sueco, chefe de uma embarcação de apoio às atividades “offshore” de óleo e gás na costa brasileira. No seu trânsito entre o trabalho e a sua residência no país natal sempre encontrava os amigos para esse convescote enogastronômico.
Como os interlocutores eram iniciados na matéria vinosa, havia sempre de ter discussões sobre os produtores, sobre o “terroir”, os aromas primários, secundários e terciários, o teor alcoólico que os vinhos apresentavam e até a qualidade da rolha ou do próprio vasilhame. Como sempre diziam, o mundo do vinho é um somatório de pequenas inúmeras frescuras. E todo o mundo estava contente com isso.
A Suécia, usada como um exemplo apenas oportuno a ser investigado, era um país capitalista com imensos programas sociais. O que seria isto? Socialdemocracia em alto grau? O amigo sueco se colocou entusiasta da direita e comemorava a vitória desta vertente política nas últimas eleições do seu país, pois era adepto da diminuição da influência estatal na vida dos cidadãos. Porém o que se viu e depreendeu era que a sua visão de direita estava mais à esquerda do que o centro inodoro em um país de capitalismo periférico como o Brasil. Ora, onde estariam esses limites?, perguntaram-se os amigos.
A decantação da conversa entre os amigos sobre a sua bebida alcoólica preferida, produzida pela fermentação da uva e do seu sumo, leva a que o que realmente importa é se o vinho é bom ou não. Independentemente da uva ou do seu corte. O que ocorre é que temos excelentes vinhos em cada tipo de uva vinífera. Todas elas. Há bons frutos e outros nem tanto em cada casta. Os enólogos fazem seus projetos também em função da qualidade dos frutos e da sua seleção e das infinitas combinações possíveis e, dessa forma, há excelentes vinhos de cada espécie, alguns de guarda, alguns vinhos medianos e outros ligeiros, para consumo despretensioso.
A filtragem da conversa política, em que cada um tem sua preferência, entre os amigos leva a que o que realmente importa para o cidadão é se a gestão do governo é boa ou não. Importa se o governante é capaz em atender as necessidades da população e se ele é competente na condução dos projetos para o desenvolvimento da nação.
Então, acima da variedade da uva, com suas características intrínsecas, estava a qualidade do fruto associada com a maestria do processo de vinificação. “Qual o vinho que você prefere?”, imaginaram, de novo, a pergunta. “Eu prefiro o bom vinho, combinaram responder”.
Para o cidadão comum, ali no seu cotidiano, importa se ele vê que a condução do governo lhe é benéfica e à população. Há bons e maus gestores tanto mais à direita quanto mais à esquerda. É melhor ter um chefe de governo competente em alguma ideologia que não seja do seu alinhamento do que ter um chefe de governo incompetente da mesma ideologia política que a sua. Era isso. Para o cidadão comum, em termos de governo, a competência vem em primeiro lugar; em segundo lugar, a competência e em terceiro a competência. A ideologia política, na prática, concluíram, é muito bom para isso mesmo: discutir ideologia no bar. “Qual o tipo de governo que você prefere?”, imaginaram, de novo, a pergunta. “Eu prefiro o competente”, combinaram responder.
E, assim, pagaram a conta social e solidariamente e, mesmo que cada um tenha permanecido com as suas mesmas preferências iniciais, tanto vitivinícolas quanto políticas, saíram dali sem terem deixado qualquer rusga de desentendimento, com aquela sensação de uma inteligente, proveitosa e agradável conversa sobre as coisas mais importantes do mundo.
Bons amigos.