A Passagem

Por Everaldo Soares

As ervas daninhas cresciam no quintal se espalhando por todo o jardim num Verde e fusco pálido. Isaque permanecia sentado numa rústica e velha cadeira de palha, enquanto passeava os olhos pelo álbum de fotografias da família. E em meio a recordações e saudades, fixou os olhos cansados como se o passado tivesse arrebatado do canto escuro da memória uma antiga lembrança animada.

Parecia indiferente e apático, soltou uma tosse baixa e seca e esfregou os olhos. Rebeca, sua esposa, olhava para o marido debruçada sobre o anteparo da varanda próximo a porta da cozinha. Isaque ficara por demais velho, e o desejo de dar a vida um sentido, extinguiram-se nele agora. Ele olha para o jardim com desdém, um vento forte sopra por sobre a copa das árvores e folhas uivando numa melodia deprimente, como se cantasse uma canção de despedida.

Rebeca, sua mulher, também ficou velha, e ela não pode fazer nada a não ser observar o marido que está sempre a fazer as mesmas coisas. Com isso eles viam os dias e anos que iam e vinham, chegavam e passavam, as vezes Isaque murmurava uma palavra sem sentido, era o máximo que podia fazer, depois adormecia sentado.

Lá vai o velho Isaque, outro dia, caminha pelo estreito corredor da varanda. Numa das mãos trás um velho cachimbo, a outra levemente se apoia sobre um cajado torto de vara de bambu. Ele senta em sua cadeira como de costume e pega o álbum de fotografias desgastado pela ação do tempo, em seguida começa ociosamente a folhear suas páginas.

Rebeca perdeu a conta de quantas vezes viu esta cena, Isaque não notara a presença da esposa porque tem uma doença degenerativa nos olhos por conta da idade. Ele se deteve numa fotografia em particular, um primo, há muito havia morrido porque certa manhã de quaresma caíra de uma mulinha e batera levemente com a cabeça, não era homem mais velho que Isaque e já partíra a meio caminho da mocidade.

Rebeca lembrava o que dele diziam a seu respeito, perguntado se sobrevivera a queda, ainda sobre os pés do animal, ele respondeu com ar travesso "morre-se muito bem as seis ou sete da tarde". Tinha lido num livro. Ao cabo de algumas horas morreu.

Quando em quando Isaque pensava sobre a sorte dos homens toda vez que lembrava do primo, embora na sua juventude vivera a vida em todo o seu esplendor, agora ela tornou-se um fardo... penosa. Ali estava Isaque, mergulhado em solidão profunda, levado por uma correnteza de estranhos sentimentos. Sussurrou uma palavra surda acenando o braço lentamente para a mulher que, supunha ele, havia de estar no mesmo lugar de ontem.

Rebeca estava disposta a ouvir, fosse o que fosse, fizesse ou não sentido, porque Isaque andava meio caduco de uns anos para cá. Murmurou algumas palavras enquanto a esposa consentia positivamente com a cabeça na medida em que ouvia, depois deixou o cachimbo cair no chão e adormeceu. Rebeca recolheu o velho cachimbo caído e se retirou um pouco corcunda para dentro de casa.

Alguns dias se passaram quando o sino da igreja soou, o sol deslizava sereno pelo céu e se aninhava por detrás do cimo. Na saída havia muita gente conhecida, Rebeca estava muito bem arrumada, mais do que de costume. Isaque ia na frente puxando o cortejo fúnebre.

Lá vai o velho Isaque, antes de morrer fez a esposa jurar por céu e terra encurvada sobre sua velha cadeira que, neste dia, não derramaria uma única lágrima. A mulher consentiu. Isaque afigurava-se animoso e mais vivo, parecia que a paz veio a ter pessoalmente.

Um dia Rebeca se achava sentada na cadeira rústica de Isaque, e folheava o álbum de fotografias da família. Uma fotografia em particular chamou sua atenção, eram Isaque e Rebeca no dia em que se casaram. Ela foi acometida de um sentimento estranho, fechou o álbum e entrou para dentro de casa, era quarta-feira de cinzas, um ano depois que Isaque havia partido. O sol deslizava sereno pelo céu num indo e vindo de uma eterna passagem.

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