Tupana Floresta
O sol mal saía e seus raios já cintilavam a àgua do grande rio. Adamastor pula da cama, lava a cara deixando escorrer junto com a água do asseio, seu rosto de ontem, para cumprir sua missão matinal, desgotar a velha canoa “Senhora do Solimões”. Pelas ruas desertas, o homem caminha a passos lentos sendo ameaçado pelos cachorros que latem. A caminhada dura alguns minutos.
Ao longe, Adamastor já garante que a canoa não fora roubada. Está presa a um cadeado, mas já a ponto de alagar. Com uma cuia, ele começa a desgotá-la. A cuia toca raspando o fundo da canoa, num animado movimento, que parece melodia aos ouvidos do já cansado homem.
Um leve banzeiro anuncia a chegada de barco, desses de motor de centro. Como experiente homem amazônico, Adamastor sabe que é hora de parar e esperar o barco chegar ou passar. Enquanto descansa o homem puxa uma prosa com um índio que a pouco havia chegado do beiradão e esperava amanhecer para ir ao banco retirar o vencimento de sua aposentadoria.
_ Bom dia compadre!
_ Bom dia!
_ Hoje parece que o sol vem bravo.
_ É.
_ Ainda bem que a chuva deu trégua, do contrário, esse barranco iria cair todo. A chuva já levou boa parte de terra daqui.
O índio ouve calado, só afirmando com a sobrancelha suspensa seguida de um murmuro: “hum”. Esta é uma maneira comum dos compadres (pessoas indígenas) confirmarem a conversa.
O velho Adamastor continua a conversa que mais parece um monólogo.
_ Os tempos não são mais como os de quando eu era criança. De pesca farta, caça pra danar. Lembro-me que meu pai era caçador e trazia mais de vinte paneiros cheios de carne salgada. Queixada, anta, veado, capivara... era de escolher. Hoje, para encontrar, só se for caçador bem esperto mesmo. Nos meses de agosto a setembro a gente escolhia quantos iaçás garantia comer. Tartaruga, nem se fala...
_ Hum.
_ O que tu pensas disso, compadre?
_Hum.
_ O que tu pensas dos dias de hoje e dos dias de ontem?
_Hum.
_ Fala homem! Tô perguntando pra ti, então responde!
_ O que eu penso? Te interessa mesmo, o que eu penso?
_ Claro! Se tô perguntando é porque quero saber! _ responde o velho Adamastor irritado com a pergunta do índio.
Então o índio num tom cerimonioso começa a proferir suas primeiras palavras:
_ A Amazônia é linda! No passado ela já foi mais do que hoje. Tudo é criação de Tupana! Ele criou o mar, as praias, o cerrado, os pampas, o deserto, as estrelas, os peixes e pássaros de todas as espécies e a Amazônia também.
De tudo que Tupana criou, no céu e na terra, a Amazônia foi o que ele mais gostou. É como se dentro do planeta Terra, ele tivesse criado outro universo. Não azul, como a Terra que a gente vê nos livros, mas verde!
O velho Adamastor sorri extasiado com tamanha sabedoria de um simples índio.
_ Nossa! Verdade, eu não havia pensado nisso!
_ Tupana cria tudo com perfeição, contudo, caprichou ainda mais quando criou a Amazônia. Você já viu algo belo mesmo? É a Amazônia, ela é a seiva do que podemos chamar de beleza. Nela encontramos um oceano de água doce. Podemos apreciar o ritual da desova, que é a piracema. Os animais que vivem na Amazônia são mais coloridos que os animais das outras regiões. Nosso ar é mais leve e mais gostoso que os outros ares. Veja o banzeiro, transforma a canoa numa rede. O nascer do sol, um presente que Tupana dá todos os dias para nós.
A natureza é a mestra da sabedoria, nos dá tudo do que necessitamos e nos ensina uma grande lição de vida. Ser grande e ser simples.
Tupana se encantou tanto quando criou a Amazônia que virou a própria floresta. Ele sabe o que é bom para cada um de nós. Nos dá alimento, é a própria água, é o próprio peixe, é a própria mata.
_ Se ele sabe de que cada um precisa, então, por que ele deixou o barranco cair, levando tantas famílias a ficar sem um teto?
_Tupana não faz isso. Ele é também a própria terra. Mas o homem não soube cuidar dessa terra, desse barranco. Tirou todo o capim, que era como os pelos de nosso corpo, serviam de proteção. Não se preocupou com a natureza, o lixo era jogado aí mesmo, no chão do terreiro, de modo que a terra foi desenvolvendo uma úlcera.
O lixo se transformou num líquido podre e enfraquecendo a terra. Esse líquido fede, como pus de ferida braba. E a terra, que também é Tupana não aguentou e tombou. É assim que aconteceu para o barranco cair. Tupana também foi vítima da falta de consciência do homem. Cada vez que a gente polui o planeta, seja na Amazônia ou em outro lugar, estamos matando Tupana também.
A prosa foi interrompida com o a chegada de outro senhor que cedinho havia ido comprar o peixe pro almoço. O mais conveniente era esperar o pescador na balsa do Djalmir, onde estava ancorada a “Senhora do Solimões”.
O índio se despediu de Adamastor e partiu, enquanto este matutava em sua cabeça as reflexões trazidas por um simples índio. Seus pensamentos se misturavam e num brado silencioso ecoavam “Amazônia é tupana que virou floresta”... “Amazônia é tupana que virou floresta”... “Amazônia é tupana que virou floresta”...