Brownface

- Aceitam E-pay? - Perguntou Jerome para a caixa, ao entrarmos no café.

- Aceitamos - respondeu ela.

- Grande sacada, essa do E-pay - aprovou ele, quando nos acomodamos numa mesa no andar superior, longe do barulho e da agitação da rua.

- É prático - repliquei, em tom neutro, enquanto examinava o cardápio. - E é uma iniciativa do governo de Cingapura; tem tudo para dar certo, apesar da campanha publicitária ofensiva...

- Campanha ofensiva? - Indagou Jerome, surpreso.

Puxei meu celular da bolsa e mostrei uma foto de propaganda do E-pay.

- Estas quatro pessoas na foto... dois homens e duas mulheres... foram interpretadas pelo mesmo ator, Dennis Chew; é um comediante popular, aqui em Cingapura - expliquei.

- Bem... sim... vejo que ele está caracterizado com as roupas de alguns grupos étnicos da ilha... há até uma senhora malaia, creio. O que tem isso de ofensivo, Victoria? - Questionou Jerome intrigado.

- Na Austrália não existe tradição de "blackface", Jerome? - Questionei, pondo o cardápio de lado.

- Blackface? Bem... isso acontece mais nos Estados Unidos. E é bem racista, por sinal.

Só então entendeu o que eu estava querendo dizer.

- Ah... esse Dennis Chew... ele escureceu o rosto para fazer alguns desses personagens?

- Sim - aquiesci. - Talvez não dê para caracterizar como "blackface", está mais para "brownface", mas pode ter certeza de que as minorias de Cingapura sentiram-se ofendidas. Sei disso porque sou de uma minoria, e é desagradável o modo como os chineses nos tratam: cidadãos de segunda classe, objeto de zombaria.

Jerome pareceu-me realmente consternado. Quase tive pena dele.

- Não sei como alguém poderia pensar isso de você, Victoria. É tão bonita!

- Grata pela parte que me toca, mas passei a minha vida toda escutando gracejos pela minha pele escura, meus traços ocidentais, e por ser de uma minoria dentre as minorias, os kristáng - retruquei. - Um governo que supostamente está preocupado com a harmonia racial e a multiculturalidade, jamais poderia ter permitido este tipo de ofensa.

E como Jerome continuasse melindrado, achei por bem concluir a história.

- A campanha saiu do ar. E a executiva responsável por ela, demitiu-se da agência de publicidade.

- Puxa, que alívio! - Redarguiu ele, parecendo tirar um peso dos ombros. - Isso resolve tudo, espero.

- Resolve - concordei. - Até que surja a próxima provocação do "Privilégio Chinês".

E voltando minha atenção novamente para o cardápio:

- Esta torta de chocolate vegana daqui, é do outro mundo. Você precisa provar!

- [20-11-2019]