O Tronco
Passei a minha infância numa cidade do interior de Minas Gerais, por nome de Ipanema, na região conhecida como Vale do Rio Doce, na zona da mata mineira, onde ainda alguns exemplares da fauna e da flora, típicas da mata Atlântica resistem bravamente à urbanização.
Ipanema tem a sua economia baseada na agricultura e na pecuária. É a prática da agricultura e o laticínio da zona rural que movimentam todo o comércio na cidade, que aliás, hoje o seu povo simples, ostenta orgulhosamente um curioso recorde; o fabrico do maior queijo manufaturado do mundo.
Quando eu era pequeno, reparava que os moradores da zona rural, ou como falamos por lá; "as pessoas da roça", só vinham para a cidade a fim de trazerem o leite para a cooperativa agropecuária, e quando precisavam comprar remédios, roupas, artigos industrializados e insumos para lavoura, no comércio da cidade.
Ipanema é uma cidade bucólica, com muitas árvores de grande porte, como a figueira e a castanheira. Então os camponeses amarravam seus animais nos troncos dessas árvores.
Os muares ficavam ali horas a fio esperando, até que os seus donos resolvessem tudo o que tinha para fazer na cidade.
As vezes me apiedava deles, ao vê-los alí, em pé sustentando o peso da charrete ou da carroçaria, por vezes molestados pelos insetos, noutras horas cochilando sobre os cascos, ou com a língua de fora de tanta sede, ou seria tédio?
Com o passar do tempo, os animais acabavam se acostumando tanto com a sombra da árvore e com o tronco, que nem era mais necessário amarrá-los, bastava coloca-los debaixo da copa, com a cara voltada para o tronco, como um moleque traquino de castigo, de cara para o quadro de giz. Eles ficavam ali por horas, tão obedientes! Como se estivessem ainda amarrados ao tronco, sem saber no entanto que estavam livres.
Se quisessem sair, vagar por paragens errantes, degustar o bom pasto de algum campo, ou hortaliças de alguma horta, correr arredio por estradas incertas, de fato o tronco não os empediria.
Mas eis que o tronco era para eles um estorvo, um verdadeiro empecilho. Ainda que não estavam amarrados a ele como no passado. O que importava é que o tronco ainda estava alí! Maldito tronco!!
Desejavam buscar a calmaria de um riacho, onde pudessem matar a sede, ou se esbaldar com o cheiro de uma poeira vermelha, quando trotando em disparada... Ou achar um belo charco, no qual pudessem rolar, e se espreguiçar...
Mas o tronco ainda estava alí!
Se acostumaram tanto ao cabresto, que lhes engessava a alma, incapacitava suas pernas, enfraquecia-lhes o ânimo, limitava os seus horizontes...
Se acosturam tanto com os cabrestos, com os troncos, as árvores, as moscas, e as sombras das copas das árvores.
Se contentavam com um coxo e uma dieta diária, medida, pesada e regrada. A única opção existente seria ficar ali estagnados, presos e reprimidos por um costume, por uma crença, por um hábito, por uma regra, por uma imposição, por um motivo qualquer ainda que ignorado ou desconhecido, por comodismo, por uma resolução idiota ou pelo bem do dono, o moço que trazia sempre nas mãos o chicote e o arreio, também pelo bem da cidade que não suportava por nojo, por vergonha ou por medo, ver animais à soltas, sujando a paisagem, por que não?! Pelo bem comum, pelo bem de todos....
E continuavam alí amarrados, recolhidos, conformados, resignados, inertes.
Mas hoje, depois de tanto tempo, tive um pensamento estranho, uma idéia perturbadora, ou seria um insight?
Uma voz vindo de dentro dos recônditos remotos da alma, um estopim atiçando as memórias adormecidas, um baubucio apavorante que me dizia; Não eram muares, eram homens...
As vezes passamos tempo demais na vida, imóveis e olhando para um tronco...
Queremos a independência e a liberdade, mas não somos audazes o suficiente para abocanha-la.