Encosta

Como somos frágeis...

Foi igual cena de filme. Assim que o carro capotou, fechei os olhos e esperei. Já não tinha o que fazer. Foram poucos milésimos apenas ouvindo os estrondos ao meu redor enquanto o carro capotava descendo uma das muitas ladeiras à beira da estrada.

Sabe essas tarefas que temos que realizar mas que são mais chatas que a média? Faz taaanto tempo que eu me cobrava para que quando eu fosse calibrar os pneus, que calibrasse também o estepe do fiestinha. Afinal: muitos buracos, estradas quase vazias à noite... Se algo acontecesse, eu teria que me virar sozinho e precisava daquele estepe em boas condições. Qual não foi o meu orgulho de mim mesmo ao estacionar, calibrar todos os pneus e me lagartixar embaixo do carro sujando minha calça de dar aula no chão do posto para encontrar o biquinho para encher o estepe. Sensação de separar o lixo antes de jogar fora, de tirar poeira da parte mais alta da estante, uma tarefa simples mas muito procrastinada e, finalmente, bem feita; sensação de dever cumprido. Pela primeira vez em quase dois anos pegando estrada uma ou duas vezes toda semana, eu estava tranquilo por estar com a água no nível recomendado, óleo trocado, tempo de sobra para chegar ao destino com tranquilidade, pingo d’ouro para comer na volta, garrafa d’água, caixa de som carregada, blusa, os materiais para a aula de teatro, pneus calibrados e, o que mais me agradava, estepe pronto para uma emergência. Estava tudo certo. Estava tudo no lugar. Estava tudo bem.

Foi igual montanha-russa. O frio na barriga, incerteza do percurso, a vontade de gritar, a tensão no corpo inteiro, e, no auge do caminho, o medo da morte. É, foi clichê assim mesmo, eu JURO que vi minha vida passando como um filme na minha cabeça.

O carro parou na ladeira de forma muito brusca.

Engraçado, mesmo eu vendo mato onde há poucos segundos estava o céu estrelado e a lua, demorei um instante para me dar conta da situação. Com as mãos ainda coladas no volante, sabe o que me veio na mente? Nesse momento mesmo, sabe do que eu lembrei? Como se alguém tivesse dado play em um vídeo, automaticamente assim que notei que estava cabeça para baixo, lembrei de uma reportagem do AutoEsporte que vi quando era pequeno, sobre como sair de um carro de ponta cabeça após um acidente.

A falta de qualquer vestígio do meu para-brisa me fez questionar se ele de fato existira algum dia. Fiquei pensando na minha aula. O primeiro passo era respirar fundo. Tinha me preparado para fazer algumas dinâmicas com os alunos, focando algumas habilidades para a nossa apresentação. Era preciso chutar o para-brisa para abrir caminho (passo que eu pulei), firmar os pés no painel e a mão esquerda no teto, para retirar o peso do cinto de segurança e poder soltá-lo. Aprendi em uma oficina não tem nem uma semana esse jogo de improvisação, ia começar com ele, logo depois do alongamento. Eu já reclamei tanto desse cinto. Porque a nossa peça não terá falas, apenas as crianças contando a história com o corpo. Porque a mola do cinto do fiestinha puxa forte. Quatro pessoas sentadas de frente para o público constroem juntas uma história, cada uma adicionando uma parte na sua vez. Ano passado mesmo, eu notei que estava estressado porque não estava respirando direito enquanto dirigia. Se chama Ivana Kupala, peça com teatro físico (foco no corpo dos atores), dança e canto. Estava me causando falta de ar. Altas aventuras causadas pelo namoro entre o sol e o mar, resumindo bastante. Sensação de elevador parado entre andares, com a porta aberta: o desespero de querer sair e o temor de que um movimento brusco possa fazer com que tudo despencasse repentinamente. Eu não sabia ainda o tamanho da peça, nem da encosta.

Ainda adoro o AutoEsporte. Mordi a língua por já ter falado mal da TV aberta.

Saí pelo buraco onde supostamente estivera o para-brisa, escalei o mato molhado e, na rodovia escura, ao som do alarme do carro eu dizia em mantra tá tudo bem tá tudo bem tá tudo bem tá tudo bem tá tudo bem tá tudo bem com os braços levantados na altura dos ombros tá tudo bem como se fosse dar um abraço robótico em alguém tá tudo bem tá tudo bem dizendo tá tudo bem para ver se a realidade voltava porque tá tudo bem que eu queria acordar porque é difícil ser lógico num sonho e eu tentando pensar como resolver aquilo porque nessa turma de teatro a maioria dos alunos são crianças e eu não queria preocupar eles e parecia que era só esperar um pouco que tudo ficaria bem como se o carro estivesse apenas estacionado e eu só precisasse respirar fundo e voltar para a estrada para dar a minha aula de teatro e aí eu olhava para a encosta e via o carro lá embaixo tá tudo bem de cabeça para baixo tá tudo bem com os faróis me cegando tá tudo bem eu esperava alguém parar naquela estrada deserta para me dizer tá tudo bem!

Eu estava vindo devagar, a estrada era muito esburacada. Pista simples, sem acostamentos cercado dos dois lados por barrancos. Havia uma curva à esquerda entre eu e um caminhão que se aproximava. Abaixei a luz e ele também. Ao entrar na curva em velocidade considerável, ele deu aquela inclinada na minha direção, efeito da força centrífuga, onde um corpo se movendo em trajetória curvilínea sente uma força atuar no sentido de tirá-lo da curva para uma trajetória reta, ou seja, escapar da curva, criando um efeito visual de inclinação principalmente em veículos mais altos (segundo o InfoEscola, porque eu reprovei em física na faculdade e não lembrava nada disso). Tirei o carro um pouco para direita na curva e caí em um longo buraco no canto da pista, então senti o carro perder aderência e temi que deslizasse para a encosta (também por causa da força centrífuga). Assim que o caminhão passou, puxei o carro para fora do buraco, e nisso, o carro rodou e foi girando até a encosta do outro lado da pista, à esquerda. Quatro segundos depois eu já estava revisitando os episódios do AutoEsporte.

O terceiro carro a passar por mim finalmente parou, estavam sem torre nos celulares. A Ivanete estava dirigindo. Me levaram numa fazenda próxima: sem torre. Só lembrava o número do meu pai de cabeça. O fazendeiro decidiu ir conosco ao local do acidente, onde agora já haviam mais carros parados e pessoas tentando descer a encosta para verificar se havia alguém dentro do carro. A Ivanete estava com a família toda no carro, indo para um casamento. Ela me emprestou o seu celular para eu tentar encontrar meu na encosta abaixo; “foi só o susto, tá tudo bem”, eu dizia quando ela, descrente, perguntava sobre minha saúde.

O carro tinha caído uns 3 ou 4 metros de altura. A encosta não era muito grande, mas estava muito lisa e tinha uma inclinação de uns 45 graus, dificultando bastante o caminho até lá embaixo. Quando alcancei o carro com a luz da lanterna do celular, pude ver com calma a situação. O carro estava de ponta cabeça sobre a encosta numa parte menos íngreme, mais ou menos 30 graus de inclinação, com a frente voltada para estrada e a traseira aparada por três fios de arame farpado de uma cerca e, logo depois desta, havia uma queda de quase 2 metros em um bueiro bem largo cercado por muretas de concreto. Depois de ver bem a cena, fiquei pensando: se não fosse aqueles três fios, acredito que não seja exagero pensar que essas muretas teriam esmagado o teto do fiestinha e, junto com o teto, talvez eu.

Como somos frágeis...

Desliguei o carro, o alarme e o farol. Peguei o que alcancei pela porta ou pelos arcos deixados pelos para-brisas, que foram removidos pelo acidente de forma cirurgicamente medieval.

Ivanete precisou ir com a família, agradeci imensamente a todos por terem parado. Seu Jorge, o fazendeiro que morava a uns 500 metros, esperou comigo o guincho por mais de uma hora enquanto eu repassava na mente os acontecidos da noite: o para-brisa traseiro também tinha quebrado, consegui avisar o pessoal de roncador que não poderia ir por problemas com o carro e descobri que o relógio do painel do carro era encaixado! Ele estava no bueiro que mencionei. Antes do acidente, a minha carteira e o celular estavam juntos no porta treco próximo ao câmbio, depois encontrei o celular próximo à mureta do bueiro. Já a carteira, semelhante ao para-brisa da frente no primeiro momento após o acidente, dava sinais de nunca ter existido.

Saí ileso. Sem dores. Apenas sujo e molhado pelo mato da encosta. Tive pequenos cortes na mão por restos dos para-brisas espalhados pelo trajeto do acidente, mas tudo sobre controle, tudo certo, tudo bem.

Perda total, segundo o cara da seguradora (que também se chama seu Jorge). O guincho não conseguiu tirar o carro, o serviço ficou para o dia seguinte sob a promessa da vinda de um guincho maior. Não dei a aula de teatro. Minha mente está passando em looping diversos episódios do AutoEsporte que podem ser relevantes algum dia e já tá tudo bem.