Homem CTC
Dia ruim. E, por mais que eu aplicasse todas as técnicas de positivismo, continuou pior.
Pela manhã, discussão básica sobre o mínimo de apresentação pessoal para não chocar a humanidade.
Falando em humanidade, faltou no consultório médico. Quarenta minutos de espera e sou recebida por um cidadão que não olhou para mim, não me cumprimentou e fez perguntas tão mecânicas como as gravações de TV por assinatura.
Consulta de três minutos e indignação pelas caretas que ele fazia ao ouvir minha falácia de dor. Interrompi o sujeito para perguntar o seu nome. Era o mínimo!
Saindo do transe "escuta-anota-imprime receita", finalmente me olhou com tanta estranheza que teria causado menos impacto se eu tivesse perguntado sua orientação sexual.
Três minutos e trinta segundos depois, três guias médicas, duas receitas, um atestado de comparecimento, saí com raiva e com mais dor do que entrei. "Coluna é assim mesmo, é o preço pela evolução de termos nos tornado bípedes... Se ainda andássemos de quatro, não sentiríamos nada"... Tá bom. Anotado.
Uber lento, horas massacrantes de trabalho com direito a um explosivo, desnecessário e mal educado e-mail do chefe. Delícia de manhã.
Tarde de números, planilhas, pressão, discussão, satisfação de egos alheios e é claro, a terrível dor cervical que, para não ficar sozinha, convocou também a lombar.
Foi neste momento, em um breve instante em que me olhei no espelho e vi alguém que não reconheci é que me lembrei de uma amiga.
Ela diz que se houver outra vida quer ser homem. Homem é uma beleza! Não se preocupa! Trabalha menos, sente menos. Quando erra é sempre culpa da mulher... Se não tiver mulher, a culpa é de qualquer um, menos dele. Também não tem TPM, celulite e não menstrua. Se um dia se separa simplesmente pega a chave do carro vai embora e deixa o caos para trás. Se trai é o cara, se é traído é o coitado. Quando fica grisalho é charmoso... E por aí vai o rosário de justificativas dela.
Eu discordo. Se tiver um milhão de vidas quero ser sempre mulher. Mesmo vendo aquela estranha no espelho.
Nada supera a maternidade, amamentar um filho, orgasmos múltiplos, não ter problema com ereção, não se preocupar em ficar careca, não brigar para provar ser macho e não ter que fazer a barba todos os dias.
Só os três primeiros motivos já valem para ser mulher em todas as vidas!!! Fato!
Aí ouvi um filósofo/pensador atual que concorda com minha amiga. Segundo ele, não tem nada mais simples do que homem. Homem consegue ficar com a cabeça vazia. Basta comida e TV e de quebra uma cerveja. Simples assim. Sexo nem precisa. Só de vez em quando.
CTC. Comida, TV, Cerveja. Não necessariamente nesta ordem. Um paraíso sem mais problemas.
Então pensei no meu próprio paraíso feminino.
Quem é mulher, trabalha pra caramba, tem três jornadas, filhos e é casada, sabe bem do que eu estou falando.
O meu me aguardava já na chegada em casa: filhos adolescentes que não entendem que as coisas não podem ser feitas da forma e na hora que querem e que não é possível, após horas de trabalho exaustivo, largar tudo para ser mais uma vez o uber caseiro e levá-los na festa de última hora do outro lado da cidade.
No meu paraíso, que é bem diferente do masculino CTC, também havia um marido querendo atenção e doido para amenizar a irritação porque foi extorquido pela décima vez pelo pedreiro porque simplesmente é teimoso e acha que algumas coisas ainda são resolvidas como no século passado.
Nesta confusão toda, ouvi ainda as cobranças do porque de eu estar tão irritada, falando alto e brigando porque fui questionada por não ter comprado a comida certa para o gato e nem o chocolate da marca "x" já que fui avisada meia hora antes de chegar em casa.
Pés doendo, fome, cansaço, irritação, frustração, mágoa. O início da noite. Um capítulo ocorrido no meu pequeno jardim do Éden. Não acontece todos os dias. É assim em todo lugar. Há dias que são muito, muito ruins. Outros são excelentes e outros apenas normais.
A questão é que quando são ruins, são de lascar. Talvez porque diferentemente dos homens, nós mulheres somos mais emocionais, mais detalhistas, gostamos das coisas mais em ordem e por questão genética nos incomodamos com a pilha de roupas jogadas no chão da lavanderia, com a louça na pia, com o carro sujo, com a conta que não foi paga, com a geladeira vazia e com tantos outros detalhes domésticos que nos tornam simplesmente... Mulheres.
Doidas e exaustas também...
É assim desde o início dos tempos. Somos os alicerces e suprimos lacunas que nem são de nossa responsabilidade. Porque queremos ver a "coisa andar", queremos a família bem, a casa organizada, o relacionamento dando certo... Porque nosso cérebro funciona diferente. Porque somos maternais, multitarefas, extremamente funcionais, surtadas, preocupadas, compreensivas, mas acima de tudo porque somos infinitamente mais fortes.
No fim de treze horas de labuta, com a coluna torcendo em dor, com o coração doendo pela discussão com os filhos, pela raiva do dia no trabalho, pelos questionamentos de culpa (que toda mãe/mulher tem) e pela ausência do marido que, emburrado, pegou uma cerveja e foi curar suas dores causadas pelo pedreiro na outra sala, me vi sozinha.
Aí me lembrei da minha amiga e do tal filósofo: comida, TV, cerveja. CTC. Peguei comida, uma cerveja e liguei a TV.
Só por ontem tentei ser o homem CTC.
Tentei por cinco minutos.
Falhei!
Então fui tomar banho e chorar no chuveiro.