A Morte da Amada

Aquilo estava acontecendo por causa dela.

Uma balzaquiana. Ou não. Talvez tivesse mais que trinta, mas nunca menos. E isso era visível com as marcas já deixadas pelos anos. Talvez estivesse entrando na casa dos quarenta. Ao certo não dava para saber.

Ficava lá, imóvel, desafiando minha paciência e provocando os pensamentos mais destrutivos.

Às vezes eu a ignorava totalmente. Passava meus dias fingindo que não notava a presença dela, mas internamente eu me roía. Enrolava as horas para não perceber sua cor suave e suas formas moldadas.

Em outras, meu desgosto e minha raiva criavam planos para, simplesmente, fazê-la sumir do planeta.

Mas, em prol do relacionamento e acreditando que um dia tudo mudaria, eu tolerava a situação.

Quando passava por ela, virava o rosto.

Quando me lembrava de alguma cena, tentava pensar em outra coisa.

E todas as vezes que repassava as inúmeras discussões causadas por ela, repetia para mim mesma que eram tolices e que um relacionamento não poderia acabar por uma besteira daquelas. Mas o fato era que estava acabando. Pelo menos para mim.

Conchita chegou a nossas vidas assim que nos casamos. Fez parte do pacote. Eu não me importei. Embriagada pelo deslumbramento de toda nova relação via tudo com olhos tolerantes e com o desejo característico de fazer tudo dar certo.

Mas, conforme os meses passavam, ela se colocou e cresceu entre nós. Por mais de uma vez pensei que não suportaria as inúmeras discussões por causa dela e que, um dia, simplesmente sairia de casa, fecharia a porta e nunca mais voltaria.

Quando estes pensamentos enchiam a minha cabeça e faziam meu estômago doer, eu ponderava que não podia abandonar tudo por um detalhe besta como ela. Uma coisinha sem graça, desnecessária, antiquada e de mau gosto.

Mas, como que por um poder paranormal, ela resistia. Ficava serena às minhas erupções de raiva. Permanecia em silêncio quando eu, ardendo de indignação a circulava com olhares mortais de quem, a cada dia, sentia mais desprezo por ela.

Meus sentimentos não eram infundados. Não surgiram do nada e se tornaram presentes como um passe de mágica. Não. Muito pelo contrário! Surgiram da quase adoração que ele, aquele a quem eu chamava de marido, nutria por Conchita.

Ele a olhava com olhos derramados. Falava dela como algo raro. Colocava-a em lugares de destaque na casa e vez ou outra tive que ceder coisas e espaços tão meus para a adequação dela! Aquela por quem tive ímpetos de fúria e desejo de partir ao meio. Ele, por outro lado não notava ou fingia não notar.

Talvez porque tivesse esperança de que, o que ele chamava de implicância da minha parte, com o tempo diminuísse e por fim, eu visse nela parte das qualidades que ele tanto exaltava.

Mas o efeito estava sendo inverso. À medida que ele insistia nas coisas boas que ela possuía eu via cada vez mais os incômodos que me causada.

E assim Conchita foi crescendo, passando de grão de areia para pedregulho, de pedregulho a rocha e por fim, um muro enorme entre nós.

Passei a reparar nos gostos dele, nas coisas que dizia e nas inconsistências de suas falas. O homem anterior culto e de bom gosto, foi sendo gradativamente substituído por um sujeito sem graça, fútil, cafona e de certa forma até esquisito.

Sim, pois se ele achava qualidades em Conchita, se ele a admirava e a comparava ao raro e vez ou outra até insinuava que ela possuía ares de sofisticação só podia ser um homem limitado. E isso o tornava, a meus olhos, um homem sem gosto e sem cultura. E para mim, passava tudo. A beleza, a juventude, o dinheiro, mas não podia passar jamais a admiração sobre a inteligência do parceiro. Quando isso acabasse, acabava casamento.

Conchita por sua vez, brilhava cada vez mais.

Ele passava horas a observá-la em seu silêncio. Muito compenetrado em pensamentos e vez ou outro o via sorrindo como se estivesse mergulhado em lembranças muito agradáveis. Ela, profundamente quieta não se dignava sequer a me dar uma pista do havia sido este passado enigmático. E se há algo que uma mulher não tolera muito bem são os mistérios da vida passada de seu homem.

E assim, enquanto eu me afastava cada vez mais para os cantos doentios da minha mente enciumada, ele se apegava mais a ela como uma tábua de salvação de uma época em que ele havia sido remotamente feliz.

Um dia percebi que eu já não queria destruí-la. Queria simplesmente voltar a ter um pouco de paz.

Eu já não pensava em tirá-la de casa e nunca mais olhar para ela. Queria apenas esquecer que um dia ela existiu.

Eu já não imaginava que podia voltar a ter meu lar, meu marido, meu espaço e minhas coisas longe da presença daquela que estragara definitivamente meu casamento. Queria apenas seguir em frente sem ter que vê-la todos os dias.

E então em uma noite silenciosa e densa do início do inverno, o pior ou o melhor aconteceu. Movida por um algum sentimento idiota de esperança ou reunindo as últimas forças de guerreira ferida que estava literalmente perdendo a guerra, resolvi revidar. Iria acabar com ela e seria em um jantar.

Marquei a noite que seria a noite da minha libertação para o fim de julho. Jantar entre amigos, muito vinho, comida boa.

Preparei tudo meticulosamente, degustando antecipadamente o ato que findaria o poder que supostamente ela tinha sobre ele e consequentemente sobre nós.

Quando chegou a hora, lá estava ela... Brilhante e renovada entre o que havia de melhor na nossa casa.

Ele a ostentava. Mostrava a todos. Falava de suas qualidades, de sua beleza, das vezes em que estiveram juntos e do amor que nutria por ela.

Eu ouvia tudo aparentemente resignada, sorria a cada elogio derramado.

Mas, quando o vinho começou a circular com mais rapidez e as taças vazias se tornaram mais exigentes, me preparei.

Primeiro a retirei da mesa e silenciosamente a levei para a cozinha. Depois a olhei por longos minutos, tentando compreender o tamanho da paixão dele e por fim, com gosto, comecei a apertá-la. Obviamente nenhum som saiu dela. Não havia como, mas confesso que na minha mente eu a vi se retorcendo, tentando desesperadamente lutar comigo, gritando com a bocarra imaginária que eu sempre percebi, perdendo gradativamente as forças e por fim, sucumbindo à força dos meus dedos e ao júbilo da minha ira.

Quando ela se calou, um saco preto a aguardava junto com outros restos do jantar.

Voltei para a mesa com novo humor. Os brindes vieram fáceis. As gargalhadas também. Eu era uma nova mulher.

No fim da noite ele a procurou. Nada. Em lugar algum. De forma alguma. Ela simplesmente sumira. Ele esbravejou, depois se desesperou e por fim desabou em choro. Alguém a levara, concluiu.

Como uma boa e antiquada esposa eu o consolei e até ensaiei uma lágrima, pois sabia o quanto Conchita significava para ele. Por certo, alguém a havia levado. Outro se encantara por ela.

Nos dias seguintes a tristeza dele era inversa e proporcional à minha alegria.

O tempo é sempre o melhor remédio. Dias depois ele já não falava nela. Caiu no esquecimento como acontece com tantos entes queridos e tantos objetos indispensáveis e raros.

Quanto a mim, guardei segredo, mas há dias, em que em silêncio me pergunto a razão de ter demorado tanto para tomar aquela decisão.

Hoje, ainda passo na sala e vejo o lugar que ela deixou vazio. Nele há um lindo vaso amarelo.

Na mesa, no lugar de destaque que ela antes ocupava , coloco agora meus talheres estilizados de uma só cor.

Enquanto bebo meu vinho branco preferido, sorrio e internamente repito que nunca mais naquela mesa estarão talheres velhos de outras vidas. Principalmente conchas de sopa, herança de família, com nomes femininos e esdrúxulos como Conchita.

Edeni Mendes da Rocha
Enviado por Edeni Mendes da Rocha em 28/06/2019
Código do texto: T6683648
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