A Ninfo do 108
Austregésilo não gostava de seu nome. E muito menos do apelido que Alzira, sua mulher, lhe botou: Tregê. Era o fim da picada. Mas naquele dia, chegando ao apartamento, depois do trabalho, gostou da brusca advertência da mulher, que lhe abria uma porta inesperada:
- Não fica zanzando muito pro lado dessa Ninfo do 108!
- O que??? Ninfa...Ninfo? 108?
A mulher o recebeu esbaforida, apertou-lhe as bochechas, olhou fixo em seus olhos, um biquinho de ódio nos lábios, e disparou:
- A Ninfo do 108. Uma sem-vergonha. Não diga que não conhece.
- Quem é essa? A Ninfo do 108... Explica.
- É uma ninfomaníaca. Você logo vai saber quem é. Se arrasta por qualquer um. Te conheço, por isso já te aviso. Se afasta, senão vai dar BO... E o ameaçava com o dedo indicador em riste, a justiceira espada de São Jorge contra o Dragão da Luxúria.
Tudo era novidade no edifício, eles tinham se mudado há uma semana. Seu apartamento era no 4° andar, o 408. Tregê pensou: 108... É no primeiro. É na nossa entrada.
Ainda não conheciam ninguém, estavam no mero bom-dia, como vai, sem sorrisos, sem contato visual com os outros moradores. Mas a mulher já tinha descoberto vários senões na nova moradia: defeitos de construção do prédio e do apartamento. A pintura um lixo, os porteiros analfabetos, a síndica uma corrupta. E já estava etiquetando os vizinhos. A Ninfo era a primeira da lista. Nada de novo, rotina: via defeito em tudo.
Alertado da ninfomaníaca - podia ser verdade - o marido repassou de memória todas as mulheres que encontrou nas escadarias e no elevador. No primeiro andar, agora destacado pela presença da Ninfo, quem desceu, quem subiu, algumas lhe chamaram a atenção, mas nenhuma em especial. Na certa, não tinha visto ainda a Ninfo do 108, se era “tão” insinuante.
A mulher ainda acrescentou:
- Todo dia tem homem entrando no apartamento dela. Um dia vi três homens e uma mulher. Outro, dois homens e duas mulheres, uma era a Ninfo, entende? Bacanal, com certeza, orgia. Viúva negra, isso é que é.
Tregê pensou que a Ninfo do 108 devia ser uma parada. Ele morava no quarto andar, mas passou a subir as escadas e devanear.
- Preciso exercício aeróbico - alegou para a patroa. Alzira não vacilou:
- Faz academia, que existe é pra isso mesmo.
- Respirar fundo naquele ambiente é caixão e vela preta, vírus pra tudo que é lado e ar condicionado mata. Você quer que eu morra, não é? Não pode ser por causa natural?
Ao descer, apertava o botão do primeiro andar, saía e fingia surpresa. Passava em revista o corredor, descia o restante, vai que a Ninfo também fazia aeróbica no lance de escadas...
Numa noite de raios e trovoadas, sonhou com ela, os dois numa performance arrebatadora. Apaixonou-se, era insuperável. Continuou a perseguição. Sonhava todos os dias com a Ninfo do 108, até quando cochilava no escritório. Mas encontrar mesmo só umas duas vezes, de longe. Ou foi impressão? Tanta gente subia e descia, o prédio parecia uma cidade, engarrafamento de elevador e de carro ainda dentro da garagem na saída pela manhã. De qualquer maneira, se viu, não a reconheceu e não teve tempo de disparar sua munição sedutora em direção àquela misteriosa tocha erótica.
Quando a mulher o chamava na linha fixa do escritório, atendia - oi môr - e passava o telefone pro Carlinhos Chinelo, o arquivista, com a instrução de só dizer "hã hã" a cada três minutos, que era o tempo da patroa respirar. Chinelo era perfeito para a tarefa, tinha praticado com a própria mulher por uns cinco anos, até ficar viúvo. Tinha frases prontas pra tudo e um timer na cabeça, com divisões pra dois, três e cinco minutos, de acordo com a necessidade de cada colega. Alzira ligava só para praguejar, disparava a metralhadora, Tregê sabia que melhor era dizer "hã hã" pra não esticar o monólogo paralelo. Agora, nessa fase, não: ela podia praguejar que fosse, mas qualquer notícia da Ninfo do 108 já era um alimento pra sua ilusão. Fazia questão de atender, sondava, se não era o que lhe interessava, arrumava logo uma desculpa, desligava.
Um dia, a mulher o chama, suave, apaziguada, e informa:
- Sabe, Tregê, retiro tudo o que disse. A Luizinha não é o que eu pensava. Gente boa, é catequista na nossa igreja e participa do grupo ““Amo meu Marido”. Sabe, é que ela aluga o apartamento pelo AirbnB, esse aplicativo. A gente virou amigas.
Austregésilo pensou: e agora? Apagar todos os sonhos? Esquecer tudo? Trocar a Ninfo do 108 pela Luizinha carola? Desperdiçar as noites de sonhos eróticos e a perseguição recém-iniciada? Voltar a subir pelo elevador, como qualquer mortal sem sonhos? Catequista da nossa igreja? Isso é que é não fazer caso dos sonhos dos outros! Grupo ““Amo meu marido”? Que coisa mais ridícula! Tudo por causa da precipitação da Alzira Sabe-tudo!
Mas não se daria por vencido. Teria que substituir esse sonho por outro. Ficar sem sonhar era fora de cogitação. Já que a Ninfo do 108 virou "Luizinha" catequista, não era aquilo que parecia, passou a sonhar com o dia de se hospedar naquele apartamento pelo AirbnB com alguma de suas hóspedes. Uma seria a Ninfo, dessa vez de verdade, com certeza. Ou três, ou quatro, o que viesse.